Textos e Pesquisas

Reflexões e pensamentos teóricos


Autor: Tiago Velasco

Tiago Velasco nasceu em 1980 no Rio de Janeiro. É escritor, jornalista, mestre em Comunicação e Cultura na UFRJ e doutor em Literatura, Cultura e Contemporaneidade na PUC-Rio. Ministra oficinas de escrita criativa e já foi professor universitário em faculdades de Comunicação e História da Arte. É autor dos livros de contos Petaluma (Ed. Oito e Meio), Microficções (publicação artesanal) e Prazer da Carne (Ed. Multifoco), além do livro de não ficção Novas dimensões da cultura pop (Ed. Multifoco). Em 2019, foi um dos vencedores do concurso de contos LER Novos Autores; em 2015, conquistou o 4º lugar no Prêmio Off Flip de Literatura na categoria contos.




Quando a literatura e as artes visuais se encontram
 



Certas obras da literatura contemporânea parecem querer resistir a qualquer parâmetro razoavelmente estável comum ao sistema literário. Por resistir aos parâmetros que definem a literatura, quer-se dizer não apenas a critérios como personagem, narrador, mas, também, ao gênero do texto, à mídia em que circula e, até, se é ficção ou não, visto que muitas vezes se assemelham a narrativas jornalísticas, documentais, etnográficas, quando não são textos publicitários, mensagens de WhatsApp, trocas de e-mails. Sem falar, ainda, quando incorporam, por vezes de forma desierarquizada, imagens, fotografias e desenhos. Os exemplos, aqui, não são exaustivos, cumprem apenas a função de ilustrar o aparente vale-tudo nas letras dos dias de hoje – ou, para ser mais preciso, desde pelo menos os anos 1960, embora seja cada vez mais recorrente (GARRAMUÑO, 2014a e 2014b; KIFFER, 2014).

Nesse contexto, os conceitos de inespecificidade e literatura fora de si, que vêm sendo trabalhados pela pesquisadora argentina Florencia Garramuño (2014a; 2014b) e, também, pela pesquisadora Ana Kiffer (2014), parecem mais pertinentes, bem como o de literatura pós-autônoma, da também argentina Josefina Ludmer (2013). Ready-made, apropriação, colagem, mas não somente, ao serem transpostos do campo das artes visuais para o da literatura, são conceitos também bastante produtivos, como mostra Leonardo Villa-Forte (2019), para compreender certo tipo de produção literária contemporânea.

Esses textos desconjuntados, disformes, fora de si representam o próprio caos contemporâneo, fragmentário, em meio a um atravessamento incessante e horizontal de imagens, textos e narrativas, de tal forma que tentativas de se determinar os limites parecem uma maneira imprópria de lidar com obras desse tipo.
Para nossa argumentação, parece ser importante contextualizar brevemente este “fora de si” e a não especificidade, como a defende Garramuño (2014a; 2014b). O fora de si remete a uma ideia de que algo está fora de um lugar próprio, à parte de uma categoria fechada, única. É o que Rosalind Krauss chamou de campo ampliado ou expandido, em ensaio clássico publicado originalmente no fim dos anos 1970, intitulado A escultura em campo ampliado. Nele, Krauss constata que nos dez anos anteriores muitas obras com pouca ou nenhuma semelhança entre si estavam sendo classificadas como escultura:

“corredores estreitos com monitores de TV ao fundo; grandes fotografias documentando caminhadas campestres; espelhos dispostos em ângulos inusitados em quartos comuns; linhas provisórias traçadas no deserto. Parece que nenhuma dessas tentativas, bastante heterogêneas, poderia reivindicar o direito de explicar a categoria escultura. Isto é, a não ser que o conceito dessa categoria possa se tornar infinitamente maleável”. (KRAUSS, 2008, p. 129).
 
Não é à toa que Florencia Garramuño parte da Krauss para pegar emprestado o “campo ampliado” para a literatura e adapta o nome de uma obra de arte visual de Nuno Ramos, Fruto estranho, para nomear seu ensaio Frutos estranhos: sobre a inespecificidade na estética contemporânea. A instalação em questão do artista visual, escritor e crítico Nuno Ramos é bastante elucidativa para a compreensão da ideia inespecificidade (ou campo expandido ou fora de si). A instalação de Nuno Ramos, para Garramuño (2014a),

“questiona a especificidade da linguagem artística ao combinar uma série de elementos diversos nos quais se interconectam árvores, música popular, filme e palavra escrita, mas também para nomear o local que parece estar construindo para a arte e para estética uma série cada vez mais importante de textos, instalações, filmes, obras de teatro e práticas artísticas contemporâneas. Frutos estranhos e inesperados, difíceis de ser categorizados e definidos, que, nas suas apostas por meios e formas diversas, misturas e combinações inesperadas, saltos e fragmentos soltos, marcas e desenquadramentos de origem, de gêneros – em todos os sentidos do termo – e disciplinas, parecem compartilhar um mesmo desconforto em face de qualquer definição específica ou categoria de pertencimento em que instalar-se.” (p. 11-12).

Por último, é interessante trazer alguns elementos da discussão que a pesquisadora argentina Josefina Ludmer (2013) promoveu em seu ensaio Literaturas pós-autônomas. Ludmer aponta que muitos textos produzidos na América Latina no início do século 21 “atravessam a fronteira da literatura (os parâmetros que definem o que é literatura) e se colocam fora e dentro, como numa posição diaspórica” (p. 128), apesar de serem vendidos em formato de livro, continuarem circulando como literatura e serem incluídos em gêneros literários tradicionais. No entanto, por mais que se apresentem como literatura, não estão sujeitos a uma análise que se utilize de critérios literários, como autor, obra, escrita, estilo.

“Não são lidos como literatura porque aplicam à literatura uma drástica operação de esvaziamento; o sentido (ou o autor, ou a escrita) fica sem densidade, sem paradoxo, sem indecidibilidade (ou como diz Tamara Kamenszain, "sem metáfora"), sendo totalmente ocupado pela ambivalência: são e não são literatura, são ficção e realidade.” (LUDMER, 2013, p. 128).

Esse tipo de literatura representaria o fim do período autônomo da literatura, um momento em que a cultura e a economia não se distinguem e em que “a realidade (pensada a partir dos meios que a constituíram constantemente) seria ficção e a ficção seria realidade” (p. 129). Esse novo momento, pós-autônomo, segundo Ludmer, implicaria uma nova forma de circulação e recepção do livro e, consequentemente, uma nova forma de ler.

Chama atenção nesse ensaio de Ludmer a ideia de que a literatura está dentro e fora de fronteiras como literatura e não literatura, ficção e realidade. São textos – para tentar não cair na armadilha de uma especificidade literária – que

“assumem a forma do testemunho, da autobiografia, da reportagem jornalística, da crônica, do diário pessoal e até mesmo da etnografia em muitos casos com algum “gênero literário” inserido em seu interior, como, por exemplo, o romance policial ou a ficção científica). Saem da literatura e entram na “realidade” e no cotidiano, na realidade do cotidiano, sendo que o cotidiano é a TV e os meios, os blogs, o e-mail, a internet. Produzem presente com a realidade cotidiana e essa é uma de suas políticas.” (2013, p. 129).

É justamente por serem pós-autônomos que não se prestam a uma fixação de gênero dentro da literatura, visto que os gêneros, as escolas literárias, as classificações eram parte de uma disputa pelo poder dentro do campo literário. Sem a especificidade do campo, essas disputas perdem o sentido: sem limites que a definem, não há o que se disputar, não há interior ou exterior, pois não há mais campo (Ludmer, 2013).

Do fim do século 20 até a segunda década do século 21, parece que a realidade se tornou ainda mais complexa e estilhaçada, com menos países e cidades para serem chamadas de seus pelos sujeitos em trânsito, cosmopolitas e globalizados, atravessados por imagens e narrativas que pululam, ubíquas, em janelas na internet, sites, livros, jornais, revistas, televisores, pop ups, e-mails, rádios, podcasts, apps de smartphones, redes sociais – em diferentes idiomas, velocidades e restrições de caracteres e em uma temporalidade elástica e sobreposta. Todos, assim, são potencialmente autores, o que reconfigura as categorias de autor e de receptor/leitor. Essa discussão, porém, não nos interessa aprofundar neste ensaio. Quer-se apenas chamar atenção para a ideia de que a realidade atual é também construída por textos e imagens de pessoas comuns, muitas vezes mostrando a própria vida, ou a versão escolhida da própria vida (automodelização) para as mídias digitais, o que não é tão diferente de uma construção narrativa sobre a própria vida para ser publicada em um livro em forma de romance. Ao menos, no que se refere aos processos artificiais que compõem narrativas – ficções, mesmo que reais.

Já falamos aqui, citando Josefina Ludmer (2013), como esses textos e imagens do dia a dia estão cada vez mais presentes na literatura de forma desierarquizada, de tal maneira que a realidade entrou na ficção e a ficção constrói a realidade, como se tudo fosse representação e, portanto, não pudesse ser representado. Isso não se dá por acaso, visto que as tecnologias de representação, de produção de imagens e texto, se encontram profundamente difundidas entre a população e são parte constituinte da vida e da identidade de cada um. Dessa forma, o procedimento de escrever sem escrever (Villa-Forte, 2019), de copiar e colar, empregado – ou emulado –, é o reconhecimento mesmo das narrativas e discursos entrecruzados que tecem a realidade em que se vive.

Assumir textos e imagens prontos, como verbetes de dicionário, fotografias, cardápios, listas, mensagens de texto compartilhadas por WhatsApp etc., pode ser entendido como o ready-made das artes visuais. O ready-made é o deslocamento de um objeto pronto, produzido para um fim não artístico, para uma situação em que é chamado de arte, como o artista francês Marcel Duchamp fez com a obra A Fonte, em 1917, um mictório produzido industrialmente, exposto, em um ambiente legitimado de arte (museu, galeria), de ponta-cabeça e assinado. O trabalho de Duchamp foi o de retirar a função do objeto já existente e transfigurá-lo em obra de arte, da mesma forma que Pierre Menard fez com o Dom Quixote de la Mancha, de Cervantes, no conto “Pierre Menard, autor do Quixote”, de Jorge Luis Borges (2001).

Como se sabe, o ready-made opera uma série de desestabilizações: a ideia de objeto original, visto que o objeto está pronto antes mesmo de o artista fazer qualquer tipo de intervenção, o enfraquecimento da técnica e do formalismo como definidores do fazer artístico e mesmo o que se entende por autor. Tudo isso levou à necessidade de se repensar os critérios valorativos e de compreensão sobre a arte, o que também ocorre na literatura em seu momento de pós-autonomia, conforme aponta Josefina Ludmer (2013).

Para incorporar e dialogar com esse caos estilhaçado do mundo contemporâneo, muitos autores têm optado pelos fragmentos em suas obras. Trechos que, apesar de organizados pelo espaço físico da página, parecem não manter uma coesão com o segmento textual anterior nem com o posterior. Ora, se esses romances são uma organização de fragmentos, muitos deles retirados diretamente da vida real, fora de contextos literários ou artísticos, os autores, então, se comportam não apenas como criadores, mas, também, como curadores, aqueles que selecionam de arquivos o material que será, por meio do diálogo com outros fragmentos no espaço físico do livro, ressignificado e, portanto, transformado em ficção. Uma organização autoral que dá novo sentido aos fragmentos, visto que a sequência imposta à leitura pelo percurso do livro impresso – da esquerda para direita, de cima para baixo – é algo que os autores levam em consideração na justaposição dos fragmentos.

Parece claro que essa literatura inespecífica ou em campo expandido não pode ser lida de acordo com critérios tradicionais literários, e por isso o diálogo com as artes visuais contemporâneas tem sido cada vez mais produtivo para se pensar essas obras impertinentes. Assim, conforme defende Ludmer (2013), por fugirem das convenções do literário, esses textos devem ser pensados por meio de critérios que dão conta desse fenômeno, sob o risco de o crítico ou o analista, por utilizar um ferramental inadequado, não conseguir se aproximar dessas obras, de tal forma que poderia, inclusive, considerá-las como não literárias – o mesmo que analisar os ready mades de Duchamp por meio de uma técnica escultórica. E, por serem assim sem fronteiras definidas e claras, clamam, também, por uma forma inespecífica de crítica e análise.


 

Referências


BORGES, Jorge Luis. Pierre Menard, autor do Quixote. In:_______. Ficções. 3ª ed., São Paulo: Globo, 2001, p. 53-63.

GARRAMUÑO, Florencia. Frutos estranhos: sobre a inespecificidade na estética contemporânea. Rio de Janeiro: Rocco, 2014a.

GARRAMUÑO, Florencia. Formas da impertinência. In: KIFFER, Ana; GARRAMUÑO, Florencia (org.). Expansões contemporâneas: literatura e outras formas. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2014b, p. 91-108.

KIFFER, Ana. A escrita e o fora de si. In: KIFFER, Ana; GARRAMUÑO, Florencia (org.). Expansões contemporâneas: literatura e outras formas. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2014, p. 47-68.

KRAUSS, Rosalind. A escultura no campo ampliado. Arte & Ensaios, Rio de Janeiro, n. 17, p. 128-137, 2008. Disponível em: https://www.ppgav.eba.ufrj.br/wp-content/uploads/2012/01/ae17_Rosalind_Krauss.pdf. Acesso em: 26 set. 2020.

LUDMER, Josefina. Literaturas pós-autônomas. In: _______. Aqui América Latina: uma especulação. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2013, p.  127-133.

VILLA-FORTE, Leonardo. Escrever sem escrever: literatura e apropriação no século XXI. Rio de Janeiro: Ed. PUC-Rio; Belo Horizonte, MG: Relicário, 2019.



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