Textos e Pesquisas

Reflexões e pensamentos teóricos


Autor: Potira Maia, artista e pesquisadora. Graduada em Artes Visuais (2016) e em Pedagogia com especialização em Educação, Cultura e Memória e Educação Especial (2006). Mestrado em Pintura na Universidade de Lisboa (2022) .



O erotismo e a ferida primordial intraespecífica1



O que nos caracteriza como humanos é o erotismo. É a premissa de que part Georges Bataille nos seus estudos acerca dos primórdios do desenvolvimento da humanidade nas Eras Neolítica e Paleolítica. Voltamo-nos para os escritos de Bataille não para reafirmar o que já parece sabido e consensual. Voltamo-nos à sua teoria po razão da contradição a respeito da distinção entre a experiência erótica de cada corpo sexuado que forma a espécie humana, pois essa contradição revela a ferida primordial que cinde a espécie em uma estrutura binária.

Existem na natureza duas formas possíveis de reprodução. A primeira é  assexuada, quando um organismo se divide gerando dois organismos iguais. A bipartição ou cissiparidade está fundada na continuidade e na indistinção dos seres. A segunda é a sexuada, quando são necessários dois indivíduos dissemelhantes, que juntos, sob o domínio da descontinuidade e da distinção, concebem outro ser, também desigual, fruto da fusão das partes cedidas pelos seres originários. Nesse processo reprodutivo, as partes individuais, espermatozoide e óvulo, morrem para conceber um novo ser. Na reprodução sexuada, a continuidade somente é instaurada no instante da morte das partes individuais, portadoras da passagem ao contínuo, a parte geradora. O novo ser gerado, contudo, é igualmente descontínuo.

A consciência da finitude e da descontinuidade foi essencial ao desenvolvimento humano. O desenvolvimento da consciência da morte por parte dos hominídeos primeiros data do Paleolítico Médio e faz ver-se através de vestígios do primeiros sepultamentos. Anteriormente, no Paleolítico Inferior, o desenvolvido da ferramentas já havia instaurado a premissa do trabalho e introduzido o sentido de utilidade, o cálculo, o planejamento e a vida ordenada, baseada no controle da violência, do excesso, do dispêndio de energia na vida humana.

Posteriormente, no Paleolítico Superior, veio a registrar-se o nascimento da arte e o surgimento do erotismo, ambos ligados intimamente aos marcos anteriores, a saber, o trabalho e a consciência da morte. “A humanidade, ao contrário, no que tem de específico no tempo do trabalho, tende a fazer de nós coisas às custas da exuberância sexual” (Bataille, 1957/2017, p. 184). É, portanto, a animalidade, ou a exuberância sexual, aquilo pelo que não podemos ser reduzidos a coisas. A consciência da morte, por sua vez, permite-nos desenvolver a percepção da individualidade e da nossa angustiante descontinuidade. No encontro sexual entre duas individualidades há um abismo, uma descontinuidade profunda e insuperável. A voragem que funda tal separação é a consciência da solidão oriunda da consciência da descontinuidade. Essa dimensão descontínua e distinta é vivida isoladamente em presença de uma constante nostalgia da continuidade perdida e o desejo de superá-la. Sintetizamos a premissa batailliana assim: a humanidade “saiu *da animalidade primeira+ trabalhando, compreendendo que morria e deslizando de uma sexualidade sem vergonha à sexualidade envergonhada, de que o erotismo decorre” (Bataille, 1957/2017, p. 55).

O erotismo é fruto desse desejo de superação da descontinuidade não a partir da atividade sexual com fins reprodutivos, promotora do vislumbramento da continuidade através da procriação, mas, sim, pela atividade sexual inútil e envergonhada, maculada pela interdição e fundada na transgressão.

“Somos incapazes de compreender a realidade e a vida em sua total abrangência. Compreendemos uma parte, mas há algo que nos é maior, o incomensurável, que abrange tudo aquilo de que não somos capazes de explicar, conter e controlar, pois é dispendioso. Excede-nos e é-nos essencial . . . . Por outro lado, os humanos construíram um mundo pautado no trabalho, na produção, na contenção de gastos.” (Maia, 2022, p. 41)

O mundo estabelecido pelo trabalho é orientado pelas interdições, esquema de regras e restrições que servem para, em alguma medida, o humano ordenar e interiorizar o que lhe excede, o intangível. No entanto, os excessos característicos da animalidade emergem de uma força que os mensuráveis não são capazes de conter. É um movimento violento que escapa à razão e aos limites da individuação. É por isso que as interdições não são totais, estabelecem-se amálgamas com as transgressões num jogo regido pela proibição e, paradoxalmente, pela violação da proibição.

As interdições recaem sobre os limites onde a vida se extrema, porque não somos capazes de dominar o encontro com a continuidade. Na atividade sexual, entrevemos o morrer e o nascer, que geram emoções extremas e proporcionais de fascínio e angústia. A transgressão é uma resposta ao vazio da descontinuidade, uma busca pela plenitude reforçada pelo fascínio promovido pela proibição. A transgressão responde aos excessos incontroláveis da natureza interior fundada no dispêndio d energia e na volúpia excedente da autopreservação. Por isso, ela é sempre experienciada. O interdito e a transgressão em relação à morte e à atividade sexual formataram um esquema definidor e estabilizador da vida social humana.

Há dois aspectos das atividades sexuais características dos humanos que importa observarmos: a atividade sexual de natureza lúdica e a sexualidade envergonhada. A atividade sexual de natureza lúdica, da qual advém o erotismo, nasceu a partir do momento em que o sexo deixou de ser uma resposta aos impulsos inconscientes de procriação e perpetuação da espécie e passou a ser uma busca conscientemente recreativa, uma resposta ao desejo de prazer2. Por sua vez, a sexualidade envergonhada é proveniente de uma busca consciente de satisfação dos desejos, mas “submetida às leis instituídas pelo interdito, como a realização privada do ato sexual e as variações de práticas com tendência ao encobrimento dos órgãos sexuais” (Maia, 2022, p. 43).

No erotismo, o que está em jogo é a dissolução das formas constituídas, ou seja, de tudo aquilo que dá forma à estrutura social do indivíduo através da interdição. Essa dissolução é movida pelo desejo de desfalecer-se, dissolver-se e fundir-se pela continuidade e pela reintegração ao incomensurável, sem que seja necessária a produção de um novo ser. A interdição torna sagrado o objeto de desejo. Cedendo ao interdito, o objeto de desejo é iluminado e, assim, transfigura-se, não podendo mais ser reduzido a uma coisa ou confundido com um objeto útil, torna-se sagrado. “De uma maneira fundamental, é sagrado o que é objeto de um interdito”, conforme explica Bataille (1957/2017, p. 91). Vale salientar que o autor não faz juízo de valor a respeito da condição sagrada que a interdição reserva ao objeto de desejo. Ser positivo ou negativo é uma avaliação fruto do desdobramento que demos ao sagrado a partir e através do Cristianismo, quando o sagrado foi repartido em divino e diabólico.

Tocamos num aspecto fundamental da teoria batailliana acerca do erotismo para construir a nossa proposição: o erótico e o sagrado são experienciados quando o indivíduo abandona a autoproteção e se entrega desmedidamente às atividades fins em si mesmas. Desta forma, não há distanciamento entre ambos. Toda experiência erótica é por natureza sagrada, pois, transgredindo a vida social ordenada pela economia, é possível entrever a continuidade a partir da entrega arrebatadora ao desejo. O sagrado comporta o erótico.

Na perspectiva da humanidade primeira, humanos e animais não se diferenciavam e os mundos profano e sagrado coexistiam imbricados. Os animais, no entanto, desconheciam os interditos e viviam o pleno gozo da natureza e, por isso, eram mais sagrados. Os seres humanos, ao contrário, pela consciência das interdições, alcançavam o mundo sagrado através da transgressão e do sacrifício.

“O que o ato de amor e o sacrifício revelam é a carne. O sacrifício substitui a vida ordenada do animal pela convulsão cega dos órgãos. O mesmo se dá com a convulsão erótica: ela libera órgãos pletóricos cujos jogos cegos prosseguem além da vontade refletida dos amantes. A essa vontade refletida sucedem os movimentos animais desses órgãos inchados de sangue. Uma violência, que a razão não controla mais, anima esses órgãos, tensiona-os até a explosão e, de repente, é a alegria dos corações de ceder ao excesso dessa tempestade.” (Bataille, 1957/2017, p. 116)

Na desorganização causada pelo vazio íntimo, tem-se a expectativa de poder ultrapassar tudo, aceder e fundir-se ao objeto de desejo, profanar o seu aspecto sagrado, aniquilá-lo em sua distinção. A experiência erótica conjuga dois movimentos de mesma grandeza, agindo, porém, em direções contrárias: a violação do interdito no intuito de dissolver o objeto de desejo em sua individuação, e o sacrifício, que é a entrega voluntária engendrada pelo anseio de fusão com o objeto de desejo. Assim, apresentamos a contradição batailliana. Numa compreensão ampliada da sua teoria sobre o erótico, distinguimos três naturezas de violação: a violação do  interdito, que corresponde à suspensão da proibição no ato da transgressão; a violação do ser constituído na fusão erótica, que diz respeito ao rompimento do isolamento, do fechamento em si mesmo; e a violação deliberada em face da ausência de consentimento.

Na perspectiva do erotismo enquanto característica fundante da espécie humana, a violação é estabelecida como uma característica elementar do jogo entre interdição e transgressão e resulta da ânsia de dissolução do objeto de desejo. Por sua vez, o sacrifício é subsequente à entrega de si em face da possibilidade de aniquilação da própria individualidade. A experiência erótica trata-se, portanto, de uma experiência de natureza interior. Neste sentido, Bataille define:

“A experiência interior do homem é dada no instante em que, quebrando a crisálida, ele tem a consciência de dilacerar a si mesmo, não a resistência oposta de fora. A superação da consciência objetiva, que as paredes da crisálida limitavam, está ligada a essa inversão.” (Bataille, 1957/2017, p. 62)

A priori, Bataille não se remete às relações envolvendo abusos ou ausência de consentimento, embora exista em seus escritos algo ambíguo na associação entre a violação e certa natureza agressiva dos seres masculinos. O autor afirma que uma desordem recai sobre o jogo erótico e transforma a sua natureza interior e sensível em uma violação deliberada, de ordem mais banal e incompatível com a violação inerente ao jogo erótico, por seu caráter racionalizável e externamente objetivável. De acordo com Bataille,

“A assimilação ao Mal é solidária da incompreensão de um caráter sagrado. Enquanto esse caráter foi comumente sensível, a violência do erotismo podia angustiar, e mesmo enojar, mas não era assimilada ao Mal profano, à violação das regras que garantem razoavelmente, racionalmente, a conservação dos bens e das pessoas.” (Bataille, 1957/2017, p. 149)

A violação deliberada, a qual não emana do desejo de encontro e de fusão, mas, antes, do desejo de dominação e destruição, vitimiza nomeadamente os indivíduos femininos da espécie. Foi, contudo, associada por Bataille como sendo um aspecto distintivo dos comportamentos eróticos habituais masculinos. Em vista disso, os homens assumiriam a posição de violadores, enquanto as mulheres, a de violadas.

A natureza essencial do ser feminino e do ser masculino não se circunscreve respectivamente aos corpos com vulvas e aos corpos com pênis numa relação dicotômica. O pensamento binário foi, contudo, uma abstração construída ao longo da história da humanidade, alicerçado em justificações aportadas nas distinções biofisiológicas dos dois corpos-sexuados da espécie. Portanto, a contradição elementar da teoria batailliana consiste no fato de Bataille ter-se convencido da crença de que os comportamentos sociais distintivos dos gêneros teriam origem imanente a cada corposexuado, ou seja, aos corpos e às suas respectivas genitais.

Contudo, apesar dessa contradição, ao voltarmo-nos à essência estruturante do pensamento de Bataille acerca do erotismo, encontramos indícios que nos levam a uma compreensão maior da primeira e perene ferida intraespecífica, que cinde a espécie e estabelece uma relação baseada na dominação e na violência. Ela pode ser elucidada no encontro entre duas imagens.

Como evidência do surgimento do erotismo e da sua compreensão por parte dos humanos primeiros, Bataille apresenta uma imagem encontrada na Caverna de Lascaux (Figura 1). Entre as pinturas encontra-se uma figura humanoide com cabeça de pássaro, deitada em frente a um bisonte que parece dirigir-se a ele. O animal com o pelo eriçado perde as suas entranhas e agoniza. A frontalidade do bisonte ferido de morte parece anunciar um ataque. Na iminência da sua aniquilação, o homem tem o órgão sexual erguido. A sua excitação é a manifestação do erotismo, a ânsia de ir até ao limite da vida, quando tudo se esvai e se tem a expectativa de poder tocar a continuidade, a indistinção da natureza.

Em contraponto a imagem evocada por Bataille, trazemos as estatuetas de Vênus. Destacamos a Vênus de Hohle Fels (Figura 2), peça mais antiga dentro dessa tipologia, associada ao início da Era Aurignaciana, datada entre 38 000 e 33 000 a. C., feita em marfim de mamute com 6cm. Medindo entre 3cm e 40cm de altura, a maiori das estatuetas apresenta cabeça diminuta, braços e pernas mais afinados nas extremidades, pés ausentes e feições exageradas nos atributos de geração da vida, nomeadamente a vulva, o ventre e os seios. Caracterizam o culto da fertilidade.




Figura 1. Bisonte estripado e figura humana com cabeça de pássaro?
Caverna de Lascaux, cerca de 16 000-14 000 a. C.
Fonte: Khan Academy.






Figura 2. Vênus de Hohle Fels, marfim de mamute, 6cm,
entre 38 000 e 33 000 a. C., Alemanha.
Fonte: Wikimedia Commons.



Se o corpo feminino, naquele momento, se tornou sagrado por comportar o grande mistério do fazer nascer, mistério que a racionalidade jamais deu conta, a consagração da mulher pelo seu atributo fecundo não foi isenta de implicações. Se  entendermos que os aspectos fundamentais da animalidade tiveram a sua primeira disrupção com a individuação, quando os hominídeos tomaram consciência de si como seres descontínuos, fissurando a relação interespecífica. O segundo encadeamento disruptivo a manifestar-se foi a sexuação, responsável pela divisão da espécie em dois grupos, o feminino e o masculino, constituindo, assim, uma segunda fissura primordial, — agora, intraespecífica —, desencadeadora de uma sociedade hierarquizada e expropriadora do feminino.

Uma referência a outra, em contraponto, faz ver a origem da construção dos dois grupos sexuais com papéis sociais distintos para o exercício da sexualidade. A primeira cena evidencia o nascimento do erotismo através da imagem de um corpo masculino. A segunda imagem revela a transfiguração do corpo feminino em sagrado por ser portador da dádiva da reprodução. Ambas as imagens pronunciam as primeiras associações relativas às diferenças sexuais, a definição de papéis identitários não só particulares, mas progressivamente hierarquizados: os corpos masculinos associados ao encontro erótico, e os corpos femininos, à representação da fertilidade com fins de perpetuação da espécie.

O culto às estatuetas de Vênus, evidência da sacralidade do corpo feminino pelo seu poder reprodutivo concomitante ao tempo que se revelara a descoberta do erotismo, notabiliza um desalinho entre os indivíduos da espécie. A exaltação pela função procriadora subtraiu da mulher a sua integralidade, a sua potência erótica, naturalmente excessiva e lúdica. A sincronia dos acontecimentos faz ver o aprisionamento da mulher em apenas uma função exercida pelo seu corpo com vista à salvaguarda da espécie. “Se pelo erótico nos constituímos enquanto humanos, sacralizar a mulher pela reprodução simbolicamente significa colocá-la à margem da humanidade, deixando-a no limiar de acesso ao que nos caracteriza como humanos” (Maia, 2022, p. 58).


Notas

1- Este artigo é um desdobramento do Capítulo II da dissertação de mestrado O corpo divino diabólico, de Potira Maia, defendida no âmbito do Mestrado em Pintura da Faculdade de Belas-Artes da Universidade de Lisboa, em 14 de fevereiro de 2022.

2- Segundo o historiador Johan Huizinga, em seu livro Homo Ludens: o jogo como elemento da cultura, a capacidade mais original característica dos humanos é o instinto do jogo ou da atividade lúdica. Bataille baseia-se na tese de Huizinga para definir os aspectos da atividade erótica.


Referências

Bataille, G. (1957/2017). O erotismo (Scheibe, F., Trad.). Belo Horizonte: Autêntica.

Maia, P. (2022). O corpo divino diabólico (Dissertação de Mestrado em Pintura). Universidade de Lisboa, Faculdade de Belas-Artes, Lisboa, Portugal.



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