Textos e Pesquisas
Reflexões e pensamentos teóricos
Autor: Leonardo Gonçalves, cineasta, pesquisador e doutorando brasileiro.
Este artigo é uma extensão do seminário Introdução ao Cinema Militante Brasileiro, promovido pela Incubadora DAO e ministrado pelo cineasta e pesquisador Leonardo Gonçalves, no dia 7 de dezembro de 2021. Na ocasião, foram apresentados aspectos gerais da história e da estética do cinema militante brasileiro, tomando como ponto de partida o movimento do Cinema Novo, em especial a sua vertente não-ficcional, e culminando no Videoativismo — ou Vídeo Popular — dos anos de 1980. Neste texto, temos por finalidade concentrar a nossa reflexão no contexto histórico e no domínio estético da produção cinematográfica militante dos decênios de 1960 e de 1970, tendo como aporte dois manifestos, Hacia un Tercer Cine, de Fernando Solanas e Octavio Getino (1969), e Estética da Fome, de Glauber Rocha (1965). Para interpretar cada um desses manifestos, analiso respectivamente os filmes La Hora de los Hornos, de Fernando Solanas e Octavio Getino (1968), e Deus e o Diabo na Terra do Sol, de Glauber Rocha (1964).
Nas décadas de 1960 e de 1970, a América Latina foi marcada por momentos de grandes convulsões sociais. Tendo como preâmbulo a Revolução Cubana de 1959, um forte apelo à independência nacional e à luta contra o domínio econômico e cultural estadunidense pôde ser sentido em todo o continente. Foi nesse período que surgiram formações “com a participação de todas as classes, presença marcante dos oprimidos (cuja direção estava em mãos de homens das classes dominantes), originadas num enfrentamento contra uma potência imperialista” (BILSKY; COGGIOLA, 1999, p. 101), formações essas também identificadas como populistas. Porém, ainda na década de 1960, instalaram-se vários governos militares de cunho ditatorial, com o apoio estadunidense e contra esse crescente movimento popular.
Tal cenário marcou o surgimento de uma geração de cineastas que utilizavam o cinema como ferramenta de transformação social, assumindo o compromisso revolucionário que influenciava fortemente esse período histórico. Entre os mais importantes manifestos que refletiram as diretrizes e as características da nova estética do cinema latino-americano, destacaram-se: Estética da Fome, de Glauber Rocha (1965); Por um Cinema Imperfeito, de Julio García Espinosa (1969); Problemas de Forma e Conteúdo no Cinema Revolucionário, de Jorge Sanjinés (1976); e, finalmente, Hacia un Tercer Cine, de Fernando Solanas e Octavio Getino (1969).
Em Rumo a um Terceiro Cinema, Solanas e Getino (1969) definem três tipos de cinema: o Primeiro Cinema, o Segundo Cinema e o Terceiro Cinema. As categorias criadas por Solanas e Getino têm como base a antiga divisão dos países em três mundos, que ficou popularmente conhecida no período da Guerra Fria: o Primeiro Mundo liderado pelos Estados Unidos e os seus aliados; o Segundo Mundo liderado pela União Soviética e os seus aliados; e, por fim, o Terceiro Mundo, composto por países subdesenvolvidos, do espectro capitalista ou socialista. Por conseguinte, as categorias refletem respectivamente esses mundos, como explicaremos a seguir.
O Primeiro Cinema tem como propósito atender às necessidades do sistema capitalista, servindo apenas como espetáculo e divertimento para as massas. Solanas e Getino referem-se, sobretudo, a Hollywood, berço do cinema industrial narrativo, dominante nos países e nos mercados filmográficos de todo o mundo.
O Segundo Cinema corresponde ao cinema de autor, especialmente à nouvelle vague francesa. Embora contribuam para inovar tanto o conteúdo quanto a forma da arte cinematográfica, os cineastas da nouvelle vague falham em subverter o sistema capitalista. Longe disso, os seus autores almejam conquistar o mercado cinematográfico e elevar os seus filmes ao estatuto de grandes obras de artes. Então, apesar dos avanços e da importância deste movimento estético, a produção e a distribuição dos filmes basicamente são as mesmas do Primeiro Cinema, com a diferença de que o produtor não ocupa o topo da hierarquia da produção de um filme, mas, sim, o diretor enquanto autor.
Por fim, o Terceiro Cinema denota um cinema militante, anti-imperialista e comprometido com as lutas sociais e com a descolonização cultural e política do povo latino.
Em síntese, esse cinema militante caracteriza-se por ser uma arte engajada politicamente, cujas produções audiovisuais estão ligadas às lutas sociais, registrando-as em caráter ficcional ou documental. O cinema militante pode estar associado a partidos, sindicatos ou coletivos, ou pode resultar do engajamento pessoal do/a cineasta, com ou sem programa e ideologia definidos. Por isso, diferentemente do Segundo Cinema, o autor do Terceiro Cinema possui pouca ou nenhuma importância em relação à causa política. Em geral, os cineastas organizam-se em coletivos audiovisuais ou, em alguns casos, identificam-se como anônimos. Além do compromisso político, esse cinema comunica ideias revolucionárias através de uma linguagem que escapa das fórmulas convencionais de Hollywood. Nas palavras de Solanas e Getino (1969), “um cinema militante deve extrair a infinidade de possibilidades novas que se lhe abrem. A tentativa de superar a opressão neocolonial obriga a inventar formas de comunicação, inaugura a possibilidade” (p. 17, tradução nossa). (Nota 2)
Solanas e Getino (1969) também ponderam os processos de circulação, exibição e debates em torno dos filmes que deveriam ter igual — senão maior — importância em relação à produção cinematográfica no contexto da luta. Para eles, o filme deve ser pretexto para discussão, reflexão e mobilização das massas, estudantes e militantes. Embora prefiram uma forma de comunicação que rompa com o cinema tipicamente hollywoodiano, Solanas e Getino não impõem regras estéticas para que se possa produzir uma filmografia militante. Pouco importa a forma do cinema militante: documentário, ficção, cinema pedagógico, cinema panfletário, cinema de denúncia etc. Toda expressão militante é válida, desde que o filme consiga estimular no espectador a vontade de transformação social.
A principal obra audiovisual que corresponde aos anseios de um Terceiro Cinema é La Hora de los Hornos, de Solanas e Getino (1968). Esta obra está mais para um extenso ensaio imagético e sonoro do que para um filme convencional com início, meio e fim sequenciados coerentemente. Dividido em três partes — Neocolonialismo e violência; Ato para a liberdade; e Violência e liberdade —, La Hora de los Hornos possui mais de quatro horas de duração e apresenta um estilo híbrido e radical na sua experimentação estética. Entre alguns recursos utilizados estão a colagem de imagens de jornais e revistas, a montagem fragmentada, imagens documentais, grafismos expressivos, interpelações diretas ao espectador e diversos estímulos imagéticos e sonoros ritmados. A estética de La Hora de los Hornos é fortemente devota dos preceitos do cine-olho de Dziga Vertov, do estilo experimental do cubano Santiago Alvarez e do gênero documentário. Vale mencionar ainda que a fruição dessa obra não precisa ser contínua como num filme normal, pois, ao contrário, é preferível a presença de um mediador que a interrompa no intuito de estimular o diálogo e a reflexão acerca das imagens projetadas. Também pouco importa a ordem em que as partes de La Hora de los Hornos são exibidas, porque cada tema pode ser evocado conforme a necessidade, o objetivo e o desejo dos participantes ou curadores. Como mencionado, o filme funciona mais como pretexto para o debate e a mobilização social do que como principal objeto a concentrar atenção.
No Brasil, o Cinema Novo (1960-1972) foi o principal movimento cinematográfico a comprometer-se com as lutas sociais a partir de uma estética igualmente revolucionária e contrária ao estilo dominante de Hollywood. Em Estética da Fome, Rocha (1965) tece reflexões pertinentes sobre a necessidade de constituir uma estética anticolonialista e compromissada com as lutas sociais, quatro anos antes da publicação do manifesto Hacia un Tercer Cine, de Solanas e Getino (1969). Ao sistematizar o ideário e as diretrizes do Cinema Novo, Rocha argumenta que os filmes de gente rica em casas bonitas têm objetivos puramente industriais e escondem o que tanto incomoda quanto envergonha a elite, a saber, a verdadeira realidade social do país, a miserabilidade do povo e a sua fome atroz. O Cinema Novo compromete-se em revelar essas verdades, e o tema da fome torna-se central:
“A fome latina, por isto, não é somente um sintoma alarmante: é o nervo de sua própria sociedade. Aí reside a trágica originalidade do Cinema Novo diante do cinema mundial: nossa originalidade é nossa fome e nossa maior miséria é que esta fome, sendo sentida, não é compreendida.” (ROCHA, 1965)
A representação estética de tais verdades sociais corresponderia a uma estética da fome, ao incorporar as miserabilidades da condição humana. Rocha (1965) defende que a linguagem do cinema anticolonialista assuma a precariedade de recursos, ou seja, baixo orçamento, equipamentos técnicos precários etc. A estética da fome internaliza na forma a miséria e a fome e, por isto, não poderia ser outra coisa senão violenta. Este é o cerne do manifesto de Rocha: a legitimação da violência do oprimido, que, uma vez que a revolta de quem passa fome não é primitiva, é, ao contrário, revolucionária. Essas ideias vieram a orientar as produções da primeira fase do Cinema Novo.
Questões relacionadas com a luta pela terra, a seca na região do nordeste brasileiro, a miséria e as relações de poder que subjugam o sujeito rural pobre marcam boa parte da produção cinematográfica dessa fase. Da filmografia desse período, Deus e o Diabo na Terra do Sol, de Glauber Rocha (1964), tornou-se o filme mais emblemático e representativo do movimento cinemanovista e alcançou o ápice da estética da fome, revelando a onipresença da violência na ação truculenta dos donos de terra, na revolta do vaqueiro Manoel, interpretado por Geraldo Del Rey, contra o seu opressor, no fanatismo religioso, no banditismo social do cangaço e no mercenarismo do personagem Antônio das Mortes, interpretado por Maurício do Valle. Este último é um personagem mercenário contratado para matar Sebastião, um líder religioso messiânico, interpretado por Lídio Silva, e Corisco, o último cangaceiro, interpretado por Othon Bastos. Antônio das Mortes, ao cumprir a sua missão, liberta Manoel e a sua esposa Rosa, interpretada por Yoná Magalhães, das duas forças alienantes: Deus, representado pelo líder messiânico, e o Diabo, representado pelo último cangaceiro.
Gravado no ambiente seco e árido do sertão baiano, distante dos estúdios de cinema, esse filme de Glauber Rocha surpreende com uma narrativa não convencional, ao conjugar várias influências, a começar pelo neorrealismo italiano e a sua denúncia da realidade social sem maquiá-la, passando pelo faroeste americano presente não apenas no ambiente desértico do sertão como também na figura icônica do matador Antonio das Mortes, até chegar à montagem rítmica de Eisenstein e a nouvelle vague francesa, ao propor a quebra da quarta parede, colocando os personagens interpelando o espectador, entre outros recursos que subvertem os preceitos da narrativa clássica do cinema. Exibido em Cannes, o filme alcançou grande prestígio na crítica internacional, especialmente a francesa, e inaugurou a estética do Cinema Novo, influenciando fortemente os próximos filmes dessa geração.
Apesar da distância temporal entre o seu lançamento e os dias de hoje, os manifestos Hacia un Tercer Cine, de Fernando Solanas e Octavio Getino (1969), e Estética da Fome, de Glauber Rocha (1965), continuam a inspirar e a desafiar artistas e cineastas engajados nas lutas sociais. Por certo, o ativismo de Rocha e de Solanas e Getino pode ser percebido na estética de diversas obras cinematográficas recentes, sobretudo as de cunho explicitamente militante. Deste modo, um estudo sobre o cinema militante latino-americano passa necessariamente pela obra e pelo pensamento desses autores-cineastas.
Notas:
1 - “Tercer Cine es para nosotros aquel que reconoce en esa lucha la más gigantesca manifestación cultural, científica y artística de nuestro tiempo, la gran posibilidad de construir desde cada pueblo una personalidad liberada: la descolonización de la cultura.”
2 - “un cine militante debe extraer la infinidad de posibilidades nuevas que se le abren. La tentativa de superar la opresión neocolonial obliga a inventar formas de comunicación, inaugura la posibilidad”.
Referências:
BILSKY, Edgardo; COGGIOLA, Osvaldo. História do movimento operário argentino. São Paulo: Xamã, 1999.
ROCHA, Glauber. Estética da Fome. Brasil, 1965. Disponível em: http://www.contracampo.com.br/21/esteticadafome.htm. Acessado em 19/01/2022.
SOLANAS, Fernando; GETINO, Octavio. Hacia un Tercer Cine. Tricontinental: 1969, 107-132.
Filmes:
DEUS E O DIABO NA TERRA DO SOL. Direção: Glauber Rocha. Roteiro: Glauber Rocha; Walter Lima Jr. Produção: Jarbas Barbosa; Luiz Augusto Mendes; Glauber Rocha; Luiz Paulino dos Santos. Brasil: Copacabana Filmes, 1964. (125 min.).
LA HORA DE LOS HORNOS. Direção e Roteiro: Fernando Solanas; Octavio Getino. Produção: Edgardo Pallero; Fernando Solanas. Argentina: Grupo Cine Liberacion; Solanas Productions, 1968. Digital. (260 min.).
Introdução ao cinema militante brasileiro: breve incursão do Terceiro Cinema à Estética da Fome
Este artigo é uma extensão do seminário Introdução ao Cinema Militante Brasileiro, promovido pela Incubadora DAO e ministrado pelo cineasta e pesquisador Leonardo Gonçalves, no dia 7 de dezembro de 2021. Na ocasião, foram apresentados aspectos gerais da história e da estética do cinema militante brasileiro, tomando como ponto de partida o movimento do Cinema Novo, em especial a sua vertente não-ficcional, e culminando no Videoativismo — ou Vídeo Popular — dos anos de 1980. Neste texto, temos por finalidade concentrar a nossa reflexão no contexto histórico e no domínio estético da produção cinematográfica militante dos decênios de 1960 e de 1970, tendo como aporte dois manifestos, Hacia un Tercer Cine, de Fernando Solanas e Octavio Getino (1969), e Estética da Fome, de Glauber Rocha (1965). Para interpretar cada um desses manifestos, analiso respectivamente os filmes La Hora de los Hornos, de Fernando Solanas e Octavio Getino (1968), e Deus e o Diabo na Terra do Sol, de Glauber Rocha (1964).
Nas décadas de 1960 e de 1970, a América Latina foi marcada por momentos de grandes convulsões sociais. Tendo como preâmbulo a Revolução Cubana de 1959, um forte apelo à independência nacional e à luta contra o domínio econômico e cultural estadunidense pôde ser sentido em todo o continente. Foi nesse período que surgiram formações “com a participação de todas as classes, presença marcante dos oprimidos (cuja direção estava em mãos de homens das classes dominantes), originadas num enfrentamento contra uma potência imperialista” (BILSKY; COGGIOLA, 1999, p. 101), formações essas também identificadas como populistas. Porém, ainda na década de 1960, instalaram-se vários governos militares de cunho ditatorial, com o apoio estadunidense e contra esse crescente movimento popular.
Tal cenário marcou o surgimento de uma geração de cineastas que utilizavam o cinema como ferramenta de transformação social, assumindo o compromisso revolucionário que influenciava fortemente esse período histórico. Entre os mais importantes manifestos que refletiram as diretrizes e as características da nova estética do cinema latino-americano, destacaram-se: Estética da Fome, de Glauber Rocha (1965); Por um Cinema Imperfeito, de Julio García Espinosa (1969); Problemas de Forma e Conteúdo no Cinema Revolucionário, de Jorge Sanjinés (1976); e, finalmente, Hacia un Tercer Cine, de Fernando Solanas e Octavio Getino (1969).
Em Rumo a um Terceiro Cinema, Solanas e Getino (1969) definem três tipos de cinema: o Primeiro Cinema, o Segundo Cinema e o Terceiro Cinema. As categorias criadas por Solanas e Getino têm como base a antiga divisão dos países em três mundos, que ficou popularmente conhecida no período da Guerra Fria: o Primeiro Mundo liderado pelos Estados Unidos e os seus aliados; o Segundo Mundo liderado pela União Soviética e os seus aliados; e, por fim, o Terceiro Mundo, composto por países subdesenvolvidos, do espectro capitalista ou socialista. Por conseguinte, as categorias refletem respectivamente esses mundos, como explicaremos a seguir.
O Primeiro Cinema tem como propósito atender às necessidades do sistema capitalista, servindo apenas como espetáculo e divertimento para as massas. Solanas e Getino referem-se, sobretudo, a Hollywood, berço do cinema industrial narrativo, dominante nos países e nos mercados filmográficos de todo o mundo.
O Segundo Cinema corresponde ao cinema de autor, especialmente à nouvelle vague francesa. Embora contribuam para inovar tanto o conteúdo quanto a forma da arte cinematográfica, os cineastas da nouvelle vague falham em subverter o sistema capitalista. Longe disso, os seus autores almejam conquistar o mercado cinematográfico e elevar os seus filmes ao estatuto de grandes obras de artes. Então, apesar dos avanços e da importância deste movimento estético, a produção e a distribuição dos filmes basicamente são as mesmas do Primeiro Cinema, com a diferença de que o produtor não ocupa o topo da hierarquia da produção de um filme, mas, sim, o diretor enquanto autor.
Por fim, o Terceiro Cinema denota um cinema militante, anti-imperialista e comprometido com as lutas sociais e com a descolonização cultural e política do povo latino.
“O terceiro cinema é, a nosso ver, o cinema que reconhece nessa luta a mais gigantesca manifestação cultural, científica e artística do nosso tempo, a grande possibilidade de construir uma personalidade libertada a partir de cada povo — numa palavra, a descolonização da cultura.” (SOLANAS; GETINO, 1969, p. 3, tradução nossa) . (Nota 1)
Em síntese, esse cinema militante caracteriza-se por ser uma arte engajada politicamente, cujas produções audiovisuais estão ligadas às lutas sociais, registrando-as em caráter ficcional ou documental. O cinema militante pode estar associado a partidos, sindicatos ou coletivos, ou pode resultar do engajamento pessoal do/a cineasta, com ou sem programa e ideologia definidos. Por isso, diferentemente do Segundo Cinema, o autor do Terceiro Cinema possui pouca ou nenhuma importância em relação à causa política. Em geral, os cineastas organizam-se em coletivos audiovisuais ou, em alguns casos, identificam-se como anônimos. Além do compromisso político, esse cinema comunica ideias revolucionárias através de uma linguagem que escapa das fórmulas convencionais de Hollywood. Nas palavras de Solanas e Getino (1969), “um cinema militante deve extrair a infinidade de possibilidades novas que se lhe abrem. A tentativa de superar a opressão neocolonial obriga a inventar formas de comunicação, inaugura a possibilidade” (p. 17, tradução nossa). (Nota 2)
Solanas e Getino (1969) também ponderam os processos de circulação, exibição e debates em torno dos filmes que deveriam ter igual — senão maior — importância em relação à produção cinematográfica no contexto da luta. Para eles, o filme deve ser pretexto para discussão, reflexão e mobilização das massas, estudantes e militantes. Embora prefiram uma forma de comunicação que rompa com o cinema tipicamente hollywoodiano, Solanas e Getino não impõem regras estéticas para que se possa produzir uma filmografia militante. Pouco importa a forma do cinema militante: documentário, ficção, cinema pedagógico, cinema panfletário, cinema de denúncia etc. Toda expressão militante é válida, desde que o filme consiga estimular no espectador a vontade de transformação social.
A principal obra audiovisual que corresponde aos anseios de um Terceiro Cinema é La Hora de los Hornos, de Solanas e Getino (1968). Esta obra está mais para um extenso ensaio imagético e sonoro do que para um filme convencional com início, meio e fim sequenciados coerentemente. Dividido em três partes — Neocolonialismo e violência; Ato para a liberdade; e Violência e liberdade —, La Hora de los Hornos possui mais de quatro horas de duração e apresenta um estilo híbrido e radical na sua experimentação estética. Entre alguns recursos utilizados estão a colagem de imagens de jornais e revistas, a montagem fragmentada, imagens documentais, grafismos expressivos, interpelações diretas ao espectador e diversos estímulos imagéticos e sonoros ritmados. A estética de La Hora de los Hornos é fortemente devota dos preceitos do cine-olho de Dziga Vertov, do estilo experimental do cubano Santiago Alvarez e do gênero documentário. Vale mencionar ainda que a fruição dessa obra não precisa ser contínua como num filme normal, pois, ao contrário, é preferível a presença de um mediador que a interrompa no intuito de estimular o diálogo e a reflexão acerca das imagens projetadas. Também pouco importa a ordem em que as partes de La Hora de los Hornos são exibidas, porque cada tema pode ser evocado conforme a necessidade, o objetivo e o desejo dos participantes ou curadores. Como mencionado, o filme funciona mais como pretexto para o debate e a mobilização social do que como principal objeto a concentrar atenção.
No Brasil, o Cinema Novo (1960-1972) foi o principal movimento cinematográfico a comprometer-se com as lutas sociais a partir de uma estética igualmente revolucionária e contrária ao estilo dominante de Hollywood. Em Estética da Fome, Rocha (1965) tece reflexões pertinentes sobre a necessidade de constituir uma estética anticolonialista e compromissada com as lutas sociais, quatro anos antes da publicação do manifesto Hacia un Tercer Cine, de Solanas e Getino (1969). Ao sistematizar o ideário e as diretrizes do Cinema Novo, Rocha argumenta que os filmes de gente rica em casas bonitas têm objetivos puramente industriais e escondem o que tanto incomoda quanto envergonha a elite, a saber, a verdadeira realidade social do país, a miserabilidade do povo e a sua fome atroz. O Cinema Novo compromete-se em revelar essas verdades, e o tema da fome torna-se central:
“A fome latina, por isto, não é somente um sintoma alarmante: é o nervo de sua própria sociedade. Aí reside a trágica originalidade do Cinema Novo diante do cinema mundial: nossa originalidade é nossa fome e nossa maior miséria é que esta fome, sendo sentida, não é compreendida.” (ROCHA, 1965)
A representação estética de tais verdades sociais corresponderia a uma estética da fome, ao incorporar as miserabilidades da condição humana. Rocha (1965) defende que a linguagem do cinema anticolonialista assuma a precariedade de recursos, ou seja, baixo orçamento, equipamentos técnicos precários etc. A estética da fome internaliza na forma a miséria e a fome e, por isto, não poderia ser outra coisa senão violenta. Este é o cerne do manifesto de Rocha: a legitimação da violência do oprimido, que, uma vez que a revolta de quem passa fome não é primitiva, é, ao contrário, revolucionária. Essas ideias vieram a orientar as produções da primeira fase do Cinema Novo.
Questões relacionadas com a luta pela terra, a seca na região do nordeste brasileiro, a miséria e as relações de poder que subjugam o sujeito rural pobre marcam boa parte da produção cinematográfica dessa fase. Da filmografia desse período, Deus e o Diabo na Terra do Sol, de Glauber Rocha (1964), tornou-se o filme mais emblemático e representativo do movimento cinemanovista e alcançou o ápice da estética da fome, revelando a onipresença da violência na ação truculenta dos donos de terra, na revolta do vaqueiro Manoel, interpretado por Geraldo Del Rey, contra o seu opressor, no fanatismo religioso, no banditismo social do cangaço e no mercenarismo do personagem Antônio das Mortes, interpretado por Maurício do Valle. Este último é um personagem mercenário contratado para matar Sebastião, um líder religioso messiânico, interpretado por Lídio Silva, e Corisco, o último cangaceiro, interpretado por Othon Bastos. Antônio das Mortes, ao cumprir a sua missão, liberta Manoel e a sua esposa Rosa, interpretada por Yoná Magalhães, das duas forças alienantes: Deus, representado pelo líder messiânico, e o Diabo, representado pelo último cangaceiro.
Gravado no ambiente seco e árido do sertão baiano, distante dos estúdios de cinema, esse filme de Glauber Rocha surpreende com uma narrativa não convencional, ao conjugar várias influências, a começar pelo neorrealismo italiano e a sua denúncia da realidade social sem maquiá-la, passando pelo faroeste americano presente não apenas no ambiente desértico do sertão como também na figura icônica do matador Antonio das Mortes, até chegar à montagem rítmica de Eisenstein e a nouvelle vague francesa, ao propor a quebra da quarta parede, colocando os personagens interpelando o espectador, entre outros recursos que subvertem os preceitos da narrativa clássica do cinema. Exibido em Cannes, o filme alcançou grande prestígio na crítica internacional, especialmente a francesa, e inaugurou a estética do Cinema Novo, influenciando fortemente os próximos filmes dessa geração.
Apesar da distância temporal entre o seu lançamento e os dias de hoje, os manifestos Hacia un Tercer Cine, de Fernando Solanas e Octavio Getino (1969), e Estética da Fome, de Glauber Rocha (1965), continuam a inspirar e a desafiar artistas e cineastas engajados nas lutas sociais. Por certo, o ativismo de Rocha e de Solanas e Getino pode ser percebido na estética de diversas obras cinematográficas recentes, sobretudo as de cunho explicitamente militante. Deste modo, um estudo sobre o cinema militante latino-americano passa necessariamente pela obra e pelo pensamento desses autores-cineastas.
Notas:
1 - “Tercer Cine es para nosotros aquel que reconoce en esa lucha la más gigantesca manifestación cultural, científica y artística de nuestro tiempo, la gran posibilidad de construir desde cada pueblo una personalidad liberada: la descolonización de la cultura.”
2 - “un cine militante debe extraer la infinidad de posibilidades nuevas que se le abren. La tentativa de superar la opresión neocolonial obliga a inventar formas de comunicación, inaugura la posibilidad”.
Referências:
BILSKY, Edgardo; COGGIOLA, Osvaldo. História do movimento operário argentino. São Paulo: Xamã, 1999.
ROCHA, Glauber. Estética da Fome. Brasil, 1965. Disponível em: http://www.contracampo.com.br/21/esteticadafome.htm. Acessado em 19/01/2022.
SOLANAS, Fernando; GETINO, Octavio. Hacia un Tercer Cine. Tricontinental: 1969, 107-132.
Filmes:
DEUS E O DIABO NA TERRA DO SOL. Direção: Glauber Rocha. Roteiro: Glauber Rocha; Walter Lima Jr. Produção: Jarbas Barbosa; Luiz Augusto Mendes; Glauber Rocha; Luiz Paulino dos Santos. Brasil: Copacabana Filmes, 1964. (125 min.).
LA HORA DE LOS HORNOS. Direção e Roteiro: Fernando Solanas; Octavio Getino. Produção: Edgardo Pallero; Fernando Solanas. Argentina: Grupo Cine Liberacion; Solanas Productions, 1968. Digital. (260 min.).