Textos e Pesquisas
Reflexões e pensamentos teóricos
Autor: Kênia Freitas, doutora em Comunicação e Cultura,
pesquisadora e crítica de cinema.
Ministra cursos e oficinas sobre crítica, cinema negro, afrofuturismo e fabulações.
De Black Panther (Ryan Coogler, 2018) ao último álbum visual de Beyoncé - Black is King (2020) - o termo afrofuturismo está em destaque nos últimos anos. Mas como podemos entender essa expressão para além dos últimos lançamentos da cultura popular negra dos EUA? Como e quando o afrofuturismo surge e como podemos defini-lo? E será que abordar o afrofuturismo significa falar exclusivamente de futuros negros? Essas são algumas das questões que discutiremos nesse texto introdutório do assunto.
Mas afinal, como podemos definir o afrofuturismo? Uma resposta sucinta é pensar o afrofuturismo como uma junção entre as narrativas de ficção especulativa e obras criadas a partir da autoria e das experiências negras. Entendendo a ficção especulativa mais como um termo guarda-chuva que abrange a ficção científica, a fantasia e o terror sobrenatural (e todos os seus subgêneros), do que como um gênero específico. Nesse sentido, a ficção especulativa trata de modos de existência, acontecimentos, situações e elementos que contrastam com as regras ou lógicas de funcionamento da realidade de quem lê/assiste - seja de forma radical, seja de forma sutil. Assim, é uma ficção de possibilidades imaginadas, de especulações. Nelas, existem elementos que só poderiam existir ou acontecer se houvesse uma alteração das condições de realidade postas.
O afrofuturismo une esse universo das ficções de possibilidades imaginadas às experiências negras (esse plural é importante para lembrarmos que essas experiências não devem ser essencializadas a um padrão único). Essa união produz uma dobra na definição do termo, pois as experiências negras em sociedades estruturadas pelo racismo anti-negro são é em também muitas vezes experiências de terror especulativo. Como afirma Greg Tate há uma proximidade das vidas negras pós-escravização e as convenções narrativas da ficção científica: “A maioria dos contos de ficção científica lidam com como o indivíduo irá lutar contra essa sociedade e circunstância de deslocamento e de alienação e isso praticamente resume a experiência massiva da população negra na pós-escravidão do século XX” (Depoimento de Tate em Last Angel of History, John Akomfrah, 1995).
O afrofuturismo é portanto marcado por uma dupla natureza definidora: 1) a criação artística que une perspectivas negras ao universo da ficção especulativa (sci-fi, fantasia, terror); 2) a experiência da população negra como uma ficção especulativa e absurda do cotidiano, uma “distopia do presente” (FREITAS; MESSIAS, 2018), ou uma experiência de abdução alienígena contínua desde o rapto de milhares de pessoas do continente africano pelo processo de colonização. Essa experiência distópica se mostra no racismo estrutural que organiza a vida das pessoas nessas sociedades, no genocídio da juventude negra (em países como o Brasil), na violência policial contra pessoas negras e no encarceramento em massa. E, mais do que definir o afrofuturismo como uma categoria narrativa ou estética, interessa-nos pensá-lo como uma lente crítica a partir da qual é possível olhar para a produção negra de ficção especulativa em diversos campos culturais ou artísticos. Afinal, o afrofuturismo está presente na música, nos quadrinhos, na literatura, no cinema, no grafite, na arte gráfica, na moda, etc.
Para finalizar essas definições iniciais, é importante ressalta que apesar do “futurismo” pertencente a palavra, o afrofuturismo não projeta apenas futuros negros. As criações afrofuturistas fabulam, reimaginam e/ou especulam sobre passado, presente e futuro. Sobretudo porque se afastam de definições lineares, cumulativas e produtivistas do tempo (ligadas ao pensamento ocidental moderno) e abraçam entendimentos circulares, espiralados e impossíveis do tempo. Seguindos os modelos de futuro descritos por Stephen Dillon (2013) - a saber: 1) o cumulativo, capaz apenas de repetir passado e presente, em um ciclo interminável de violência gratuita e ilimitada aos corpos negros; e 2) o não linear, impensável, traçado pela indagação dos mortos (socialmente) aos vivos, planejando uma radical desorganização social e fins do mundo -, o tempo em grande parte da produção especulativa afrofuturista está associado ao segundo regime.
A discussão de Susan Arndt sobre “FuturoS” também é fundamental para entendermos o curto-circuito temporal afrofuturista. Para Arndt (2017), o futuro nunca existe na simplicidade da singularidade, estando sempre: causalmente intersectado com o passado e presente; e moldado por complexidades e coexistências de encontros glocais de agências conflitantes, concorrentes e complementares, interesses, contingências, possibilidades e opções. Não existe só um futuro ou um só um afro-futuro, mas uma infinidade de possibilidades especulativas em disputa. Assim como, convocando um pensamento não linear sobre as temporalidades podemos pensar também em termos de passadoS e presenteS concomitantes e conflitantes.
Mas então porque o “futurismo” no afrofuturismo? Uma das explicações pode vir do contexto de surgimento do termo: o final do século XX em um momento em que a tecnocultura se popularizava e o debate do futuro da sociedade misturava-se com o do futuro das tecnologias da informática. Mark Dery, que cunhou o termo em 1993, localiza na sub representação negra no ambiente da tecnocultura em formação a sua motivação original: "Busquei o termo Afrofuturismo em parte por frustração - melhor dizendo, fúria - diante da incrível Brancura da tecnocultura dos anos 1990 (...)" (DERY, 2018, p. 93). O crítico cultural branco pensa o afrofuturismo como "uma placa na estrada para a Terra do Amanhã, chamando nossa atenção para a cegueira racial da futurologia branca do livre-mercado (...)" (Idem, p. 97). Em sua retomada do termo em uma publicação de 2016, Dery o redefiniu como: "uma forma de olhar para os fatos atuais, as memórias históricas e para essa alucinação consensual que chamamos de futuro pelas lentes de uma ficção especulativa negra" (Ibidem). Uma definição que nos parece atualizar de forma relevante o debate.
Para Alondra Nelson, as histórias afrofuturistas propõem outra relação entre raça, tecnologia, ancestralidade, passado e futuro. Ela cita como exemplo a relação proposta pelo escritor negro Ishmael Reed, que em 1972 publicou o seminal Mumbo Jumbo, livro que é uma sátira sobre as relações raciais nos EUA, contrapondo a civilização Ocidental branca ao perigo de uma espécie de vírus da negritude, que findaria por derrotar o Ocidente. Reed explica o seu projeto de escrita a partir da ideia de necromancia: "usar o passado para explicar o presente e profetizar o futuro" (Reed Apud Nelson 2002, p. 7). Para Nelson, o termo propõe uma orientação temporal contrária ao discurso tecnocrático dominante dos anos 1990. Nessa reorientação, o passado deixa de ser uma herança antiquada que precisa ser esquecida, superada ou ultrapassada, e passa a ser "um passado vivo, retido no presente e transportado para o futuro" (Nelson 2002, p. 7). Uma reorientação que percebemos em muitas obras afrofuturistas, como no filme Last angel of history (John Akomfrah, 1995) - do qual falaremos a seguir.
Essa re-orientação temporal dialoga diretamente com duas inquietações levantadas por Mark Dery em seu texto fundador. A primeira sendo: "como uma comunidade cujo passado foi deliberadamente apagado - e cujas energias foram, subsequentemente, consumidas pela busca de traços legíveis de sua história - pode imaginar possíveis futuros?" (Dery 2002, pp. 99-101). E a questão subsequente: "será que os tecnocratas, autores de ficção científica, futurologistas, diretores de arte e pioneiros - quase todos brancos - que construíram nossas fantasias coletivas já não tem a chave desse não lugar imaginário?" (Idem, p. 101). E o que percebemos no romance de Reed e em diversas narrativas afrofuturistas é um curto-circuito, uma mistura, uma re-orientação temporal de passado, presente e futuro. É justamente a partir da fabulação, recriação, reinvenção de um passado deliberadamente apagado que as narrativas especulativas de futuros e presentes negros se constituem.
Um processo que ocorre em Last angel of history, filme afrofuturita lançado em 1995, ou seja apenas dois anos após Mark Dery cunhar o termo. Nesse sentido, o filme é uma significativa refundação do afrofuturismo a partir de uma perspectiva interna - de um artista negro, John Akomfrah, e com uma proposta formal narrativa experimental (FREITAS, 2017). Como define Kara Keeling, "o filme enfoca os aspectos sônicos do afrofuturismo, especialmente a música, e as lógicas geográficas, industriais, políticas e filosóficas que informaram sua produção" (Keeling 2019, p. 124. Tradução nossa). Em sua composição, de um lado, acompanhamos a jornada do ladrão de dados que vem de 200 anos no futuro em busca de uma encruzilhada para escavar os tecno-fósseis, decifrar o código revelado por esses fragmentos da cultura negra e encontrar neles a chave para o futuro. De outra parte, o filme se compõe de uma série de entrevistas com artistas, intelectuais, cientistas (em sua grande maioria negros).
No filme de Akomfrah a chave para o futuro está no passado, e esse passado é ao mesmo tempo ancestral e tecnológico. É um passado vivo de que nos fala Alondra Nelson em relação ao afrofuturismo e a necromancia que nos propõe Ishmael Reed em Mumbo Jumbo (1972). Esse é portanto um filme que nos ajuda a vivenciar os curtos-circuitos temporais afrofuturistas, com os óculos escuros do seu personagem que rouba dados dos passados para o recriar futuroS. Óculos, que acreditamos, carregam em si a lente afrofuturista de criação.
Referências
ARNDT, Susan. “Dream*hoping memory into futureS: reading resistant narratives about Maafa by employing futureS as a category of analysis” in Journal of the African Literature Association, nº11:1, 2017. pp 3-27.
DERY, Mark. "De volta ao afrofuturo: afrofuturismo 1.0". LAIA, João (Org.). Festival de Arte Contemporânea Sesc_Videobrasil. Edições Sesc São Paulo e Associação Cultural Videobrasil, 2018, pp. 91-111.
DILLON, Stephen. “‘It’s Here, It’s That Time’: Race, Queer Futurity, and the Temporality of Violence in Born in Flames” in Women & Performance: A Journal of Feminist Theory 23, no. 1, 2013, pp. 38–51.
FREITAS, Kênia. “Roubando Dados: a refundação do Afrofuturismo em O Último Anjo da História”. In: MURARI, Lucas; SOMBRA, Rodrigo (orgs). O Cinema de Akomfrah: espectros da diáspora. Rio de Janeiro: LDC, 2017, pp. 125-130.
FREITAS, Kênia; MESSIAS, José. O futuro será negro ou não será: Afrofuturismo versus Afropessimismo - as distopias do presente. REVISTA IMAGOFAGIA. , v.17, p.402 - 424, 2018.
KEELING, Kara. Queer Times, Black Futures. New York: NYU Press, 2019.
NELSON, Alondra (2002). "Introduction: FUTURE TEXTS. Social Text 1. June 2002; v. 20, pp. 1–15.
Introdução ao Afrofuturismo: um curto-circuito temporal
De Black Panther (Ryan Coogler, 2018) ao último álbum visual de Beyoncé - Black is King (2020) - o termo afrofuturismo está em destaque nos últimos anos. Mas como podemos entender essa expressão para além dos últimos lançamentos da cultura popular negra dos EUA? Como e quando o afrofuturismo surge e como podemos defini-lo? E será que abordar o afrofuturismo significa falar exclusivamente de futuros negros? Essas são algumas das questões que discutiremos nesse texto introdutório do assunto.
Mas afinal, como podemos definir o afrofuturismo? Uma resposta sucinta é pensar o afrofuturismo como uma junção entre as narrativas de ficção especulativa e obras criadas a partir da autoria e das experiências negras. Entendendo a ficção especulativa mais como um termo guarda-chuva que abrange a ficção científica, a fantasia e o terror sobrenatural (e todos os seus subgêneros), do que como um gênero específico. Nesse sentido, a ficção especulativa trata de modos de existência, acontecimentos, situações e elementos que contrastam com as regras ou lógicas de funcionamento da realidade de quem lê/assiste - seja de forma radical, seja de forma sutil. Assim, é uma ficção de possibilidades imaginadas, de especulações. Nelas, existem elementos que só poderiam existir ou acontecer se houvesse uma alteração das condições de realidade postas.
O afrofuturismo une esse universo das ficções de possibilidades imaginadas às experiências negras (esse plural é importante para lembrarmos que essas experiências não devem ser essencializadas a um padrão único). Essa união produz uma dobra na definição do termo, pois as experiências negras em sociedades estruturadas pelo racismo anti-negro são é em também muitas vezes experiências de terror especulativo. Como afirma Greg Tate há uma proximidade das vidas negras pós-escravização e as convenções narrativas da ficção científica: “A maioria dos contos de ficção científica lidam com como o indivíduo irá lutar contra essa sociedade e circunstância de deslocamento e de alienação e isso praticamente resume a experiência massiva da população negra na pós-escravidão do século XX” (Depoimento de Tate em Last Angel of History, John Akomfrah, 1995).
O afrofuturismo é portanto marcado por uma dupla natureza definidora: 1) a criação artística que une perspectivas negras ao universo da ficção especulativa (sci-fi, fantasia, terror); 2) a experiência da população negra como uma ficção especulativa e absurda do cotidiano, uma “distopia do presente” (FREITAS; MESSIAS, 2018), ou uma experiência de abdução alienígena contínua desde o rapto de milhares de pessoas do continente africano pelo processo de colonização. Essa experiência distópica se mostra no racismo estrutural que organiza a vida das pessoas nessas sociedades, no genocídio da juventude negra (em países como o Brasil), na violência policial contra pessoas negras e no encarceramento em massa. E, mais do que definir o afrofuturismo como uma categoria narrativa ou estética, interessa-nos pensá-lo como uma lente crítica a partir da qual é possível olhar para a produção negra de ficção especulativa em diversos campos culturais ou artísticos. Afinal, o afrofuturismo está presente na música, nos quadrinhos, na literatura, no cinema, no grafite, na arte gráfica, na moda, etc.
Para finalizar essas definições iniciais, é importante ressalta que apesar do “futurismo” pertencente a palavra, o afrofuturismo não projeta apenas futuros negros. As criações afrofuturistas fabulam, reimaginam e/ou especulam sobre passado, presente e futuro. Sobretudo porque se afastam de definições lineares, cumulativas e produtivistas do tempo (ligadas ao pensamento ocidental moderno) e abraçam entendimentos circulares, espiralados e impossíveis do tempo. Seguindos os modelos de futuro descritos por Stephen Dillon (2013) - a saber: 1) o cumulativo, capaz apenas de repetir passado e presente, em um ciclo interminável de violência gratuita e ilimitada aos corpos negros; e 2) o não linear, impensável, traçado pela indagação dos mortos (socialmente) aos vivos, planejando uma radical desorganização social e fins do mundo -, o tempo em grande parte da produção especulativa afrofuturista está associado ao segundo regime.
A discussão de Susan Arndt sobre “FuturoS” também é fundamental para entendermos o curto-circuito temporal afrofuturista. Para Arndt (2017), o futuro nunca existe na simplicidade da singularidade, estando sempre: causalmente intersectado com o passado e presente; e moldado por complexidades e coexistências de encontros glocais de agências conflitantes, concorrentes e complementares, interesses, contingências, possibilidades e opções. Não existe só um futuro ou um só um afro-futuro, mas uma infinidade de possibilidades especulativas em disputa. Assim como, convocando um pensamento não linear sobre as temporalidades podemos pensar também em termos de passadoS e presenteS concomitantes e conflitantes.
Mas então porque o “futurismo” no afrofuturismo? Uma das explicações pode vir do contexto de surgimento do termo: o final do século XX em um momento em que a tecnocultura se popularizava e o debate do futuro da sociedade misturava-se com o do futuro das tecnologias da informática. Mark Dery, que cunhou o termo em 1993, localiza na sub representação negra no ambiente da tecnocultura em formação a sua motivação original: "Busquei o termo Afrofuturismo em parte por frustração - melhor dizendo, fúria - diante da incrível Brancura da tecnocultura dos anos 1990 (...)" (DERY, 2018, p. 93). O crítico cultural branco pensa o afrofuturismo como "uma placa na estrada para a Terra do Amanhã, chamando nossa atenção para a cegueira racial da futurologia branca do livre-mercado (...)" (Idem, p. 97). Em sua retomada do termo em uma publicação de 2016, Dery o redefiniu como: "uma forma de olhar para os fatos atuais, as memórias históricas e para essa alucinação consensual que chamamos de futuro pelas lentes de uma ficção especulativa negra" (Ibidem). Uma definição que nos parece atualizar de forma relevante o debate.
Para Alondra Nelson, as histórias afrofuturistas propõem outra relação entre raça, tecnologia, ancestralidade, passado e futuro. Ela cita como exemplo a relação proposta pelo escritor negro Ishmael Reed, que em 1972 publicou o seminal Mumbo Jumbo, livro que é uma sátira sobre as relações raciais nos EUA, contrapondo a civilização Ocidental branca ao perigo de uma espécie de vírus da negritude, que findaria por derrotar o Ocidente. Reed explica o seu projeto de escrita a partir da ideia de necromancia: "usar o passado para explicar o presente e profetizar o futuro" (Reed Apud Nelson 2002, p. 7). Para Nelson, o termo propõe uma orientação temporal contrária ao discurso tecnocrático dominante dos anos 1990. Nessa reorientação, o passado deixa de ser uma herança antiquada que precisa ser esquecida, superada ou ultrapassada, e passa a ser "um passado vivo, retido no presente e transportado para o futuro" (Nelson 2002, p. 7). Uma reorientação que percebemos em muitas obras afrofuturistas, como no filme Last angel of history (John Akomfrah, 1995) - do qual falaremos a seguir.
Essa re-orientação temporal dialoga diretamente com duas inquietações levantadas por Mark Dery em seu texto fundador. A primeira sendo: "como uma comunidade cujo passado foi deliberadamente apagado - e cujas energias foram, subsequentemente, consumidas pela busca de traços legíveis de sua história - pode imaginar possíveis futuros?" (Dery 2002, pp. 99-101). E a questão subsequente: "será que os tecnocratas, autores de ficção científica, futurologistas, diretores de arte e pioneiros - quase todos brancos - que construíram nossas fantasias coletivas já não tem a chave desse não lugar imaginário?" (Idem, p. 101). E o que percebemos no romance de Reed e em diversas narrativas afrofuturistas é um curto-circuito, uma mistura, uma re-orientação temporal de passado, presente e futuro. É justamente a partir da fabulação, recriação, reinvenção de um passado deliberadamente apagado que as narrativas especulativas de futuros e presentes negros se constituem.
Um processo que ocorre em Last angel of history, filme afrofuturita lançado em 1995, ou seja apenas dois anos após Mark Dery cunhar o termo. Nesse sentido, o filme é uma significativa refundação do afrofuturismo a partir de uma perspectiva interna - de um artista negro, John Akomfrah, e com uma proposta formal narrativa experimental (FREITAS, 2017). Como define Kara Keeling, "o filme enfoca os aspectos sônicos do afrofuturismo, especialmente a música, e as lógicas geográficas, industriais, políticas e filosóficas que informaram sua produção" (Keeling 2019, p. 124. Tradução nossa). Em sua composição, de um lado, acompanhamos a jornada do ladrão de dados que vem de 200 anos no futuro em busca de uma encruzilhada para escavar os tecno-fósseis, decifrar o código revelado por esses fragmentos da cultura negra e encontrar neles a chave para o futuro. De outra parte, o filme se compõe de uma série de entrevistas com artistas, intelectuais, cientistas (em sua grande maioria negros).
No filme de Akomfrah a chave para o futuro está no passado, e esse passado é ao mesmo tempo ancestral e tecnológico. É um passado vivo de que nos fala Alondra Nelson em relação ao afrofuturismo e a necromancia que nos propõe Ishmael Reed em Mumbo Jumbo (1972). Esse é portanto um filme que nos ajuda a vivenciar os curtos-circuitos temporais afrofuturistas, com os óculos escuros do seu personagem que rouba dados dos passados para o recriar futuroS. Óculos, que acreditamos, carregam em si a lente afrofuturista de criação.
Referências
ARNDT, Susan. “Dream*hoping memory into futureS: reading resistant narratives about Maafa by employing futureS as a category of analysis” in Journal of the African Literature Association, nº11:1, 2017. pp 3-27.
DERY, Mark. "De volta ao afrofuturo: afrofuturismo 1.0". LAIA, João (Org.). Festival de Arte Contemporânea Sesc_Videobrasil. Edições Sesc São Paulo e Associação Cultural Videobrasil, 2018, pp. 91-111.
DILLON, Stephen. “‘It’s Here, It’s That Time’: Race, Queer Futurity, and the Temporality of Violence in Born in Flames” in Women & Performance: A Journal of Feminist Theory 23, no. 1, 2013, pp. 38–51.
FREITAS, Kênia. “Roubando Dados: a refundação do Afrofuturismo em O Último Anjo da História”. In: MURARI, Lucas; SOMBRA, Rodrigo (orgs). O Cinema de Akomfrah: espectros da diáspora. Rio de Janeiro: LDC, 2017, pp. 125-130.
FREITAS, Kênia; MESSIAS, José. O futuro será negro ou não será: Afrofuturismo versus Afropessimismo - as distopias do presente. REVISTA IMAGOFAGIA. , v.17, p.402 - 424, 2018.
KEELING, Kara. Queer Times, Black Futures. New York: NYU Press, 2019.
NELSON, Alondra (2002). "Introduction: FUTURE TEXTS. Social Text 1. June 2002; v. 20, pp. 1–15.