Textos e Pesquisas
Reflexões e pensamentos teóricos
Autor:
Prof. Dr.
Juliano
Santos do Carmo.
Professor na Universidade Federal de Pelotas. Chefe do Departamento de Filosofia. Membro do Programa de Pós-Graduação em Filosofia. Coordenador do Curso de Especialização em Ensino de Filosofia. Editor da Revista Dissertatio de Filosofia. Editor do NEPFIL online.
No século XX, um importante movimento surgiu na filosofia da arte, sobretudo na década de 1960, um movimento que mais tarde seria chamado de “Arte Conceitual” (a arte como ideia ou conceito), cujo paradigma essencial era a obra de arte concebida de modo emocionalmente “seco” ou “frio” (pensada de forma a priori em relação à sua execução). A arte passou a buscar seus fundamentos nos paradigmas influentes da filosofia da linguagem, da semiótica e da linguística. A arte conceitual tinha por objetivo principal romper com a ideia de arte como “instituição”. Artistas importantes, como o norte-americano Joseph Kosuth, por exemplo, passaram a propor um rompimento fundamental entre arte e estética (a independência da arte em relação às conjecturas filosóficas). Além da estética deixar de ser o elemento fundador da obra, a arte deveria estar completamente desvinculada de qualquer método científico ou empirista. Ou seja, a arte deveria estar profundamente pautada unicamente em aspectos formais. Essa perspectiva, contudo, foi sobrepujada pelo advento dos ready-mades, com o artista francês Marcel Duchamp, ou seja, quando a arte mudou o foco dos aspectos formais da linguagem e passou a se concentrar em seus aspectos semânticos.
Pode-se dizer que a relação, outrora desgastada, entre arte e filosofia da arte (estética) foi parcialmente restabelecida em 1979, com o lançamento de Languages of Art, do filósofo norte-americano Nelson Goodman. Apesar de não obter frequentemente a importância merecida, a obra de Goodman amplifica diversas perspectivas presentes tanto na arte quanto na filosofia da arte, pois aborda a densidade sintática (a forma), a densidade semântica (o conteúdo), a plenitude sintática e a exemplificação. Segundo Goodman, estes são os quatro “sintomas” conjuntamente suficientes e disjuntivamente necessários para uma experiência estética ocorrer. Além de retomar o tema da “experiência estética” (tão caro à filosofia da arte), Goodman também traz à tona outro tópico especialmente importante: a arte deve ser concebida como uma atividade cognitiva, pois ela nos ajuda a fortalecer, por assim dizer, “nossos músculos intelectuais”. A arte nos prepara para sobreviver e canalizar a energia em excesso (afastando-a de escapes destrutivos). Nas palavras de Goodman, “ela torna o cientista mais perspicaz e o mercador mais astuto” (2006, 269-70).
Outro aspecto importante que abriu o caminho para os desenvolvimentos atuais é justamente a tese de Goodman de que as emoções enriquecem nossas experiências estéticas e que jamais deveríamos privá-las de conteúdo emocional (opondo-se explicitamente à arte puramente conceitual). A cognição tem o papel de discriminar e relacionar emoções para aferir e apreender uma obra de arte, mas também para integrá-la ao restante de nossas experiências no mundo. A ideia é a de que as experiências sensoriais e emotivas se relacionam de modo complexo com as propriedades dos objetos. Se a experiência estética envolve emoções e as emoções possuem uma função cognitiva, então a experiência estética não está necessariamente desvinculada da cognição. Uma vez instituída a necessidade de compreender melhor o papel cognitivo da arte e de que arte e a filosofia da arte não precisam estar necessariamente desvinculadas, surgiram novas perspectivas promissoras.
A Neuroestética surgiu na década de 1990, com o cientista inglês Semir Zeki, cujo objetivo principal era fornecer uma explicação de base biológica para o prazer estético visual. No livro Art and Brain (1998), Zeki procurou identificar estruturas e funções cerebrais (especialmente àquelas relacionadas ao córtex visual) para mostrar que as artes visuais são uma função do cérebro visual e que, portanto, estas devem seguir suas leis. O trabalho pioneiro de Zeki foi importante para a neuroestética, mas hoje o foco não se encontra reduzido ao córtex visual, mas, antes, em uma ampla variedade de estruturas e funções cerebrais (principalmente o sistema límbico que é responsável por nossas emoções e sentimentos). A neuroestética hoje é um campo de investigação interdisciplinar que envolve pelo menos a filosofia da arte, a psicologia, a neurociência, a inteligência artificial e, é claro, as artes.
Por outro lado, a arte é considerada como uma das técnicas fundamentais para explorar e expandir nossas habilidades cognitivas, especialmente quando se trata de exercitar nossa capacidade de imaginar cenários (possíveis ou impossíveis) e melhorar nossas capacidades de aprendizado, antecipação de eventos e resolução de problemas. As obras ficcionais (literatura, filmes, séries, etc.) nos convidam para um exercício de participação construtiva na qual devemos atribuir sentido/significado aos pequenos fragmentos que nos são apresentados em “doses homeopáticas” durante uma narrativa. Um exemplo desse tipo de narrativa ficcional pode ser observado nos instigantes episódios da série "Black Mirror" de 2011, onde praticamente nada é inicialmente revelado para contextualizar a narrativa. O engajamento cognitivo na narrativa faz com que sejamos capazes de antecipar (com alguma precisão) os possíveis desfechos da trama que está sendo apresentada.
Esses resultados são corroborados por algumas descobertas científicas importantes. A descoberta da dopamina (neurotransmissor responsável pela comunicação entre diferentes áreas do cérebro envolvidas na expectativa de recompensa, no processamento de emoções, planejamento e raciocínio) fez com que a arte cinematográfica, por exemplo, sofresse transformações substanciais (seja em termos de capturar a atenção do espectador para a narrativa, seja em termos de levar o espectador ao cinema, por exemplo). A expectativa de decifrar a estrutura da narrativa está relacionada à tendência natural do cérebro em adquirir recompensas em virtude do esforço, a qual por sua vez está vinculada mais fortemente a alguma recompensa inesperada. Quando a recompensa é maior do que o esperado, ocorre um aumento natural no fluxo de dopamina no cérebro. Se for menor, o fluxo de dopamina diminui. No entanto, quando a previsão inicial da recompensa é confirmada na narrativa ficcional, então não há mudanças na sinalização dopaminérgica, e isso ocorre porque não houve mudança cognitiva em nosso sistema conceitual. Essa é uma evidência importante de que a arte deve ser considerada como uma atividade cognitiva.
A filosofia da arte avançou bastante na tentativa de compreender como funcionam nossas “experiências estéticas” e como elas podem ser consideradas “cognitivas”, mas esse avanço só foi possível com a inclusão de dados científicos em suas perspectivas teóricas. Nesse sentido, é importante ressaltar que a arte contemporânea está essencialmente ligada à tecnologia. O consumo cada vez maior de objetos de arte (crypto artes, filmes, séries, imagens, dança, etc.) faz com que a filosofia da arte encontre novos desafios, como a própria efemeridade da arte, por exemplo. Mesmo a contemplação de pinturas clássicas também tem sido alvo de muita discussão, pois é preciso compreender que a experiência estética ocorre através de um cuidadoso processo de construção conceitual (que não é capturado imediatamente pela própria imagem), ou seja, as imagens são carregadas de teorias, estilos, metodologias, intenções do artista, etc. Um exemplo disso é justamente a clássica obra de Marcel Duchamp (La Fontaine) que não pode ser compreendida sem o conceito de ready-made ou de “subversão do sentido através do uso”, ou mesmo as obras de Andy Warhol, as quais não podem ser compreendidas sem o conceito de “esgotamento do sentido” através da replicação infinita (industrial) das imagens.
Um elemento fundamental para a experiência estética é nosso sistema sensorial/perceptivo, através do qual recebemos os estímulos externos e os processamos em nossos cérebros. Percepção e cognição caminham lado a lado para que cada experiência estética possa ser produzida e é isso que faz com que os sujeitos tenham experiências estéticas individuais. Serotonina, oxitocina e dopamina são as principais substâncias químicas liberadas no cérebro quando temos uma experiência prazerosa e emocionalmente positiva. Tais substâncias estão essencialmente vinculadas ao prazer estético. Hoje é possível observar em tempo real e sem a necessidade de qualquer procedimento invasivo (através da ressonância magnética funcional, por exemplo) o que ocorre no cérebro de alguém quando este experimenta uma obra de arte. Muitos pesquisadores chegam a mencionar que as experiências estéticas moldam nossas identidades, muitas vezes nos tornando pessoas melhores uma vez que exercitamos também nossa capacidade de sentir empatia (especialmente quando nos colocamos emocionalmente no lugar de algum personagem). Esse tipo de descoberta se tornou possível graças ao uso de tecnologia avançada e de pesquisas em arte interativa.
Um dos grandes desafios para a neuroestética é justamente identificar estruturas e funções cerebrais vinculadas às experiências estéticas. Já sabemos que elas impactam profundamente nossos circuitos biológicos e que elas estão vinculadas ao nosso sistema límbico, mas ainda é um grande desafio identificar os biomarcadores no cérebro para que essas mudanças possam ser mensuráveis de forma objetiva. Uma vez identificados, alguns protocolos podem ser construídos para que dispositivos não-invasivos possam medir com certa precisão o impacto de uma experiência estética em nossa cognição. Hoje os dispositivos de neuromodulação são utilizados tanto em pessoas com transtornos mentais e de aprendizagem (especialmente para produzir mudanças no córtex pré-frontal), como em pessoas “normais” para potencializar as áreas responsáveis pela melhoria na criatividade e desempenho esportivo. Uma limitação inerente neste processo é justamente o fato de que a neuromodulação não atinge níveis subcorticais mais profundos que são importantes para diversos tipos de emoções (amígdala, hipocampo, etc.). A neuromodulação tem como princípio norteador a plasticidade neural e pode mostrar como nossos cérebros são afetados com os novos aprendizados.
Em se tratando de técnicas não-invasivas, também estão disponíveis outros dispositivos tecnológicos que realizam a medição da respiração, da frequência cardíaca, temperatura e estímulos sensoriais na pele quando alguém está sob alguma experiência estética ou quando se está em processo criativo. É claro, a maior parte dos dispositivos disponíveis é prioritariamente destinada a encontrar soluções para reduzir as adversidades de terapias medicamentosas (psicofármacos) em pessoas com disfunções. Contudo, alguns achados científicos “periféricos/derivados” sugerem que as experiências estéticas são muito eficazes para auxiliar no tratamento de diversas doenças ou disfunções (como o uso de música para o tratamento da ansiedade, por exemplo), pois ela é capaz de desencadear uma interação dinâmica entre as células cerebrais que viabilizam mudanças significativas que afetam nossos comportamentos, emoções e ações. A descoberta de que experiências estéticas estão vinculadas à cognição pode nos ajudar a ampliar a pesquisa científica através de financiamentos específicos para a área (algo ainda bastante escasso na atualidade).
Para concluir, convém notar que, diferentemente do que pensaram os filósofos e artistas de boa parte do século XX, a arte e a filosofia da arte estão profundamente imbricadas. A arte constrói narrativas e modelos de realidade através do uso de tecnologias inovadoras (dentre outras coisas, ela provoca, seleciona, analisa, discrimina, associa ou rejeita diferentes modelos de realidade). A filosofia da arte (neste caso a Neuroestética) tem o potencial de explicar como a arte é suficientemente capaz de realizar tais tarefas, especialmente com o auxílio de achados neurocientíficos.
Referências
CABANNE, P. Marcel Duchamp: Engenheiro do Tempo Perdido. São Paulo: Perspectiva, 2002.
GOMBRICH, E. H. Arte e Ilusão: Um Estudo da Psicologia da Representação Pictórica. São Paulo: Martins Fontes, 2007.
GOODMAN, N. Linguagens da Arte. Lisboa: Gradiva, 2006.
CELA-CONDE, C. Activation of the prefrontal cortex in the human visual aesthetic perception. New York: PNAS, 2004.
KOSUTH, J. A Arte Depois da Filosofia. In. Escritos de artistas. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2006.
MAGSAMEN, S. Your Brain on Art: The Case for Neuroaesthetics. Cerebrum: the Dana forum on brain science, 2019, cer-07-19.
ZEKI, S. Inner Vision: An Exploration of Art and the Brain. Oxford: Oxford University Press, 1999.
Neuroestética e Filosofia da Arte: aproximações e desafios
No século XX, um importante movimento surgiu na filosofia da arte, sobretudo na década de 1960, um movimento que mais tarde seria chamado de “Arte Conceitual” (a arte como ideia ou conceito), cujo paradigma essencial era a obra de arte concebida de modo emocionalmente “seco” ou “frio” (pensada de forma a priori em relação à sua execução). A arte passou a buscar seus fundamentos nos paradigmas influentes da filosofia da linguagem, da semiótica e da linguística. A arte conceitual tinha por objetivo principal romper com a ideia de arte como “instituição”. Artistas importantes, como o norte-americano Joseph Kosuth, por exemplo, passaram a propor um rompimento fundamental entre arte e estética (a independência da arte em relação às conjecturas filosóficas). Além da estética deixar de ser o elemento fundador da obra, a arte deveria estar completamente desvinculada de qualquer método científico ou empirista. Ou seja, a arte deveria estar profundamente pautada unicamente em aspectos formais. Essa perspectiva, contudo, foi sobrepujada pelo advento dos ready-mades, com o artista francês Marcel Duchamp, ou seja, quando a arte mudou o foco dos aspectos formais da linguagem e passou a se concentrar em seus aspectos semânticos.
Pode-se dizer que a relação, outrora desgastada, entre arte e filosofia da arte (estética) foi parcialmente restabelecida em 1979, com o lançamento de Languages of Art, do filósofo norte-americano Nelson Goodman. Apesar de não obter frequentemente a importância merecida, a obra de Goodman amplifica diversas perspectivas presentes tanto na arte quanto na filosofia da arte, pois aborda a densidade sintática (a forma), a densidade semântica (o conteúdo), a plenitude sintática e a exemplificação. Segundo Goodman, estes são os quatro “sintomas” conjuntamente suficientes e disjuntivamente necessários para uma experiência estética ocorrer. Além de retomar o tema da “experiência estética” (tão caro à filosofia da arte), Goodman também traz à tona outro tópico especialmente importante: a arte deve ser concebida como uma atividade cognitiva, pois ela nos ajuda a fortalecer, por assim dizer, “nossos músculos intelectuais”. A arte nos prepara para sobreviver e canalizar a energia em excesso (afastando-a de escapes destrutivos). Nas palavras de Goodman, “ela torna o cientista mais perspicaz e o mercador mais astuto” (2006, 269-70).
Outro aspecto importante que abriu o caminho para os desenvolvimentos atuais é justamente a tese de Goodman de que as emoções enriquecem nossas experiências estéticas e que jamais deveríamos privá-las de conteúdo emocional (opondo-se explicitamente à arte puramente conceitual). A cognição tem o papel de discriminar e relacionar emoções para aferir e apreender uma obra de arte, mas também para integrá-la ao restante de nossas experiências no mundo. A ideia é a de que as experiências sensoriais e emotivas se relacionam de modo complexo com as propriedades dos objetos. Se a experiência estética envolve emoções e as emoções possuem uma função cognitiva, então a experiência estética não está necessariamente desvinculada da cognição. Uma vez instituída a necessidade de compreender melhor o papel cognitivo da arte e de que arte e a filosofia da arte não precisam estar necessariamente desvinculadas, surgiram novas perspectivas promissoras.
A Neuroestética surgiu na década de 1990, com o cientista inglês Semir Zeki, cujo objetivo principal era fornecer uma explicação de base biológica para o prazer estético visual. No livro Art and Brain (1998), Zeki procurou identificar estruturas e funções cerebrais (especialmente àquelas relacionadas ao córtex visual) para mostrar que as artes visuais são uma função do cérebro visual e que, portanto, estas devem seguir suas leis. O trabalho pioneiro de Zeki foi importante para a neuroestética, mas hoje o foco não se encontra reduzido ao córtex visual, mas, antes, em uma ampla variedade de estruturas e funções cerebrais (principalmente o sistema límbico que é responsável por nossas emoções e sentimentos). A neuroestética hoje é um campo de investigação interdisciplinar que envolve pelo menos a filosofia da arte, a psicologia, a neurociência, a inteligência artificial e, é claro, as artes.
Por outro lado, a arte é considerada como uma das técnicas fundamentais para explorar e expandir nossas habilidades cognitivas, especialmente quando se trata de exercitar nossa capacidade de imaginar cenários (possíveis ou impossíveis) e melhorar nossas capacidades de aprendizado, antecipação de eventos e resolução de problemas. As obras ficcionais (literatura, filmes, séries, etc.) nos convidam para um exercício de participação construtiva na qual devemos atribuir sentido/significado aos pequenos fragmentos que nos são apresentados em “doses homeopáticas” durante uma narrativa. Um exemplo desse tipo de narrativa ficcional pode ser observado nos instigantes episódios da série "Black Mirror" de 2011, onde praticamente nada é inicialmente revelado para contextualizar a narrativa. O engajamento cognitivo na narrativa faz com que sejamos capazes de antecipar (com alguma precisão) os possíveis desfechos da trama que está sendo apresentada.
Esses resultados são corroborados por algumas descobertas científicas importantes. A descoberta da dopamina (neurotransmissor responsável pela comunicação entre diferentes áreas do cérebro envolvidas na expectativa de recompensa, no processamento de emoções, planejamento e raciocínio) fez com que a arte cinematográfica, por exemplo, sofresse transformações substanciais (seja em termos de capturar a atenção do espectador para a narrativa, seja em termos de levar o espectador ao cinema, por exemplo). A expectativa de decifrar a estrutura da narrativa está relacionada à tendência natural do cérebro em adquirir recompensas em virtude do esforço, a qual por sua vez está vinculada mais fortemente a alguma recompensa inesperada. Quando a recompensa é maior do que o esperado, ocorre um aumento natural no fluxo de dopamina no cérebro. Se for menor, o fluxo de dopamina diminui. No entanto, quando a previsão inicial da recompensa é confirmada na narrativa ficcional, então não há mudanças na sinalização dopaminérgica, e isso ocorre porque não houve mudança cognitiva em nosso sistema conceitual. Essa é uma evidência importante de que a arte deve ser considerada como uma atividade cognitiva.
A filosofia da arte avançou bastante na tentativa de compreender como funcionam nossas “experiências estéticas” e como elas podem ser consideradas “cognitivas”, mas esse avanço só foi possível com a inclusão de dados científicos em suas perspectivas teóricas. Nesse sentido, é importante ressaltar que a arte contemporânea está essencialmente ligada à tecnologia. O consumo cada vez maior de objetos de arte (crypto artes, filmes, séries, imagens, dança, etc.) faz com que a filosofia da arte encontre novos desafios, como a própria efemeridade da arte, por exemplo. Mesmo a contemplação de pinturas clássicas também tem sido alvo de muita discussão, pois é preciso compreender que a experiência estética ocorre através de um cuidadoso processo de construção conceitual (que não é capturado imediatamente pela própria imagem), ou seja, as imagens são carregadas de teorias, estilos, metodologias, intenções do artista, etc. Um exemplo disso é justamente a clássica obra de Marcel Duchamp (La Fontaine) que não pode ser compreendida sem o conceito de ready-made ou de “subversão do sentido através do uso”, ou mesmo as obras de Andy Warhol, as quais não podem ser compreendidas sem o conceito de “esgotamento do sentido” através da replicação infinita (industrial) das imagens.
Um elemento fundamental para a experiência estética é nosso sistema sensorial/perceptivo, através do qual recebemos os estímulos externos e os processamos em nossos cérebros. Percepção e cognição caminham lado a lado para que cada experiência estética possa ser produzida e é isso que faz com que os sujeitos tenham experiências estéticas individuais. Serotonina, oxitocina e dopamina são as principais substâncias químicas liberadas no cérebro quando temos uma experiência prazerosa e emocionalmente positiva. Tais substâncias estão essencialmente vinculadas ao prazer estético. Hoje é possível observar em tempo real e sem a necessidade de qualquer procedimento invasivo (através da ressonância magnética funcional, por exemplo) o que ocorre no cérebro de alguém quando este experimenta uma obra de arte. Muitos pesquisadores chegam a mencionar que as experiências estéticas moldam nossas identidades, muitas vezes nos tornando pessoas melhores uma vez que exercitamos também nossa capacidade de sentir empatia (especialmente quando nos colocamos emocionalmente no lugar de algum personagem). Esse tipo de descoberta se tornou possível graças ao uso de tecnologia avançada e de pesquisas em arte interativa.
Um dos grandes desafios para a neuroestética é justamente identificar estruturas e funções cerebrais vinculadas às experiências estéticas. Já sabemos que elas impactam profundamente nossos circuitos biológicos e que elas estão vinculadas ao nosso sistema límbico, mas ainda é um grande desafio identificar os biomarcadores no cérebro para que essas mudanças possam ser mensuráveis de forma objetiva. Uma vez identificados, alguns protocolos podem ser construídos para que dispositivos não-invasivos possam medir com certa precisão o impacto de uma experiência estética em nossa cognição. Hoje os dispositivos de neuromodulação são utilizados tanto em pessoas com transtornos mentais e de aprendizagem (especialmente para produzir mudanças no córtex pré-frontal), como em pessoas “normais” para potencializar as áreas responsáveis pela melhoria na criatividade e desempenho esportivo. Uma limitação inerente neste processo é justamente o fato de que a neuromodulação não atinge níveis subcorticais mais profundos que são importantes para diversos tipos de emoções (amígdala, hipocampo, etc.). A neuromodulação tem como princípio norteador a plasticidade neural e pode mostrar como nossos cérebros são afetados com os novos aprendizados.
Em se tratando de técnicas não-invasivas, também estão disponíveis outros dispositivos tecnológicos que realizam a medição da respiração, da frequência cardíaca, temperatura e estímulos sensoriais na pele quando alguém está sob alguma experiência estética ou quando se está em processo criativo. É claro, a maior parte dos dispositivos disponíveis é prioritariamente destinada a encontrar soluções para reduzir as adversidades de terapias medicamentosas (psicofármacos) em pessoas com disfunções. Contudo, alguns achados científicos “periféricos/derivados” sugerem que as experiências estéticas são muito eficazes para auxiliar no tratamento de diversas doenças ou disfunções (como o uso de música para o tratamento da ansiedade, por exemplo), pois ela é capaz de desencadear uma interação dinâmica entre as células cerebrais que viabilizam mudanças significativas que afetam nossos comportamentos, emoções e ações. A descoberta de que experiências estéticas estão vinculadas à cognição pode nos ajudar a ampliar a pesquisa científica através de financiamentos específicos para a área (algo ainda bastante escasso na atualidade).
Para concluir, convém notar que, diferentemente do que pensaram os filósofos e artistas de boa parte do século XX, a arte e a filosofia da arte estão profundamente imbricadas. A arte constrói narrativas e modelos de realidade através do uso de tecnologias inovadoras (dentre outras coisas, ela provoca, seleciona, analisa, discrimina, associa ou rejeita diferentes modelos de realidade). A filosofia da arte (neste caso a Neuroestética) tem o potencial de explicar como a arte é suficientemente capaz de realizar tais tarefas, especialmente com o auxílio de achados neurocientíficos.
Referências
CABANNE, P. Marcel Duchamp: Engenheiro do Tempo Perdido. São Paulo: Perspectiva, 2002.
GOMBRICH, E. H. Arte e Ilusão: Um Estudo da Psicologia da Representação Pictórica. São Paulo: Martins Fontes, 2007.
GOODMAN, N. Linguagens da Arte. Lisboa: Gradiva, 2006.
CELA-CONDE, C. Activation of the prefrontal cortex in the human visual aesthetic perception. New York: PNAS, 2004.
KOSUTH, J. A Arte Depois da Filosofia. In. Escritos de artistas. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2006.
MAGSAMEN, S. Your Brain on Art: The Case for Neuroaesthetics. Cerebrum: the Dana forum on brain science, 2019, cer-07-19.
ZEKI, S. Inner Vision: An Exploration of Art and the Brain. Oxford: Oxford University Press, 1999.